Agostinho Amor de Pedro

Agostinho de Hipona — SÁBADO DE PÁSCOA
Tradução de António Fazenda

3. Ora pois, respondera Pedro ao Senhor com não pouca presunção e soberba: «Arriscarei a minha vida por Ti» (Jo 13, 37). Ainda não tinha recebido forças para cumprir a promessa; agora, para a poder cumprir, recebe uma enchente de caridade. Por isso à pergunta Pedro, tu tens-Me amor? também responde: Tenho, porque tal coisa só a pode cumprir a caridade.

Ora então, Pedro! Quando negaste, que temeste? Tudo aquilo que te metia medo era morrer. Está vivo falando contigo Aquele que viste morto. Doravante não temas a morte; foi vencida por Aquele que tu temias morresse. Esteve pendurado da cruz, foi pregado com cravos, rendeu o espírito, foi atravessado pela lança e posto no sepulcro. Com medo disto é que tu negaste, o que temeste foi sofrer isto, e por medo da morte negaste a vida. Toma agora sentido: Quando temeste a morte, então morreste. Realmente, morreu com a negação e ressuscitou com o pranto.

Por que é que depois lhe diz: Segue-Me? Porque já sabia que estava preparado. Pois se estais lembrados, antes porque estão lembrados os que leram — e os que o leram e já se esqueceram bom é que o recordem, ou que tomem conhecimento os que ainda não leram —, Pedro tinha dito: Seguir-Te-ei para onde quer que fores (Mt 8, 19; Lc 9, 57). E o Senhor observara: Não Me podes seguir agora, seguir-Me-ás depois (Jo 13, 36). Agora, disse, não podes. Prometes, mas vejo as tuas forças, penetro com meus olhos o teu coração e informo o doente do seu verdadeiro estado: Agora não Me podes seguir. Mas como este diagnóstico do médico não é desesperado, por isso ajunta e diz: Seguir-Me-ás depois. Hás-de sarar e então Me seguirás. Agora, como vê o que passa no coração dele e vê o dom de amor que lhe meteu na alma, diz-lhe: Segue-Me. Eu, não há dúvida que tinha dito: Não podes agora; mas Eu mesmo digo: Agora segue-Me.

4. Surge aqui uma dificuldade que se não deve passar de largo. Quando o Senhor disse a Pedro: Segue-Me, deitou Pedro os olhos para trás ao discípulo que Jesus amava, isto é, ao próprio S. João que escreveu o Evangelho, e pergunta ao Senhor: Senhor, e este? Sei que o amas. Como é então que eu Te hei-de seguir e não Te há-de seguir ele? Responde o Senhor: Quero que ele fique assim até que Eu venha: tu segue-Me (Jo 21, 22). Ora o mesmo Evangelista, aquele mesmo que escreveu a frase que a ele se refere «assim quero que ele fique até que Eu venha», prosseguindo acrescentou no Evangelho estas palavras suas em que diz que por causa deste dito correra fama entre os irmãos que aquele discípulo não havia de morrer. E para desfazer esta opinião acrescentou: Não disse, porém, Jesus que ele não havia de morrer; mas só disse: quero que ele assim fique até que Eu venha, tu segue-Me. Ora esta opinião, segundo a qual S. João não havia de morrer, desfê-la o próprio S. João com as palavras que aditou; para que tal coisa se não acreditasse, diz: O Senhor não disse tal coisa; o que disse foi isto. Mas a razão por que o Senhor disse aquilo, S. João não a declarou, mas deixou-nos a nós o cuidado de bater à porta, para ver se porventura no-la abrirão.

5. E conforme a graça que o Senhor se digna fazer-me, por quanto me parece perceber — outros melhores entenderão melhor —, julgo que esta questão se pode resolver de duas maneiras: ou o Senhor falou do martírio de Pedro ou do Evangelho de João.

Pelo que se refere ao martírio, «segue-Me» quereria dizer: padece por Mim, padece o que Eu padeci; pois foi crucificado Cristo e também Pedro foi crucificado e padeceu os cravos e padeceu tormentos. João, porém, nada disto experimentou. Quero que ele assim fique significa que ele faleça sem ferida e sem suplício e que espere. Tu segue-Me: padece o que Eu padeci, derramei o meu sangue por ti, derrama o teu sangue por Mim. Este é o primeiro modo como se pode expor a frase: Assim quero que ele fique até que Eu venha, tu segue-Me. Não quero que ele padeça, padece tu.

Mas penso que também se pode entender com referência ao Evangelho de S. João. Pedro escreveu do Senhor como escreveram outros também. Mas o que eles escreveram ocupa-se mais da humildade1 do Senhor. Mas realmente o Senhor Jesus Cristo é Deus e homem. Homem que quer dizer? Alma e corpo. Que é então Cristo? Verbo, alma e corpo. Mas que espécie de alma, porque também os animais têm suas almas? Verbo, alma racional2 e corpo: Cristo é tudo isto. Ora da divindade de Cristo há alguma coisa nas epístolas de S. Pedro, mas no Evangelho de S. João ela é que predomina. No princípio era o Verbo, disse ele. Transpõe as nuvens, transcende os astros, transcende os Anjos, transcende toda a criatura, chega ao Verbo pelo qual tudo foi feito. «No princípio era o Verbo, o qual estava no princípio junto de Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele.» Quem seria capaz de o contemplar, de o meditar, de o perceber como convém e de o exprimir competentemente? Isto só se poderá entender bem quando Cristo vier3. «Quero que ele fique assim até que Eu venha.» Expliquei-vos isto conforme pude. Ele em vossos corações pode fazê-lo melhor.4


  1. Por humilitas, o autor entende não uma qualidade moral, mas a condição humana em relação à condição divina, com referência a Fil 2, 8. 

  2. Este ponto visa os apolinaristas. 

  3. «Isto pode-se explicar mais claramente assim: Segue-Me até ao fim pelas ações da tua vida, modelado pelo exemplo da minha Paixão, mas entra numa contemplação que há-de continuar até que Eu venha, e que há-de chegar ao seu ponto de perfeição quando Eu chegar (In Eu. Jo. 124, 5). 

  4. Cathedra in corde habet qui corda docet… interior ergo magister est qui docet, Christus docet, inspiratio ipsius docet, ubi illius inspiratio et unctio illius non est, forinsecus inaniter perstrepunt verba (Tem cátedra no coração Aquele que ensina os corações … quem, pois, ensina é o mestre interior, ensina Cristo, ensina a inspiração d’Ele, onde não houver inspiração e unção d’Ele, baldadamente trovejam por fora as palavras).