Nicola Abbagnano — História da Filosofia
A TEOLOGIA
O terceiro dos grandes místicos desta época é Ricardo de S. Victor. Escocês de nascimento, cedo se dirigiu a Paris e entrou para o mosteiro de S. Victor. Aqui se cultivou guiado por S. Hugo e, pela morte deste, sucedeu-lhe no ensino e no priorado. Morreu em 1173. Ricardo é, como Hugo, escolástico e místico. Entre as suas obras escolásticas há um tratado em três livros De trinitate e um texto De verbo incarnato. Entre as obras místicas: De preparatione ad contemplationem chamado também Beniamin minor; De gratia contemplationis chamada também Beniamin maior; De statu interioris hominis; De exterminatione mali.
Ricardo distingue a verdade fundada na experiência, da verdade fundada na razão e da verdade fundada na fé. O homem conhece as coisas temporais através da experiência; as coisas eternas em parte com a razão, em parte com a fé. Do que é eterno, com efeito, nem tudo pode ser conhecido através da razão, há muito que só pode ser revelado por Deus e tem, por conseguinte, como pressuposto a fé (De trinit., I, 1). Todavia, Ricardo não desiste de prosseguir na sua busca ideal da demonstração apodítica. Na sua obra Sobre a Trindade declara a sua intenção de acrescentar em apoio da fé razões não só prováveis, como necessárias, e exprime a confiança de que tais razões não faltam (lb., I, 4).
Estas razões dizem respeito, em primeiro lugar, à existência de Deus. Tal como Hugo, ele também prefere partir da experiência para a demonstração de Deus em homenagem ao princípio (sobre o qual insistirá S. Tomás) de que «todo o nosso processo demonstrativo tem início naquilo que conhecemos pela experiência» (Ibid., I, 7). A sua argumentação consiste essencialmente em ascender das coisas finitas, que não têm ser por si, a um princípio que tem o ser por si e é eterno. Se este princípio não existisse, as coisas que não têm ser por si não teriam podido recebê-lo do nada e portanto não existiriam. A existência mutável do ser contingente demonstra a eternidade do ser necessário (Ib., I, 6).
Da experiência, Ricardo parte também para demonstrar a trindade de Deus. A experiência demonstra que o raio de sol, ainda que procedendo do sol e tendo a sua origem nele, é no entanto seu contemporâneo. O sol produz por si o raio e em tempo algum carece dele. Ora se a luz corpórea tem um raio que é seu contemporâneo, porque razão não terá também a luz espiritual um raio seu coeterno? Não é admissível que a natureza divina, princípio de toda a fecundidade, tenha ficado estéril em si mesma e não haja gerado nada, ela que deu a todas as coisas a possibilidade de gerar. É portanto provável que na incomutabilidade supra-essencial de Deus haja algo que não existe por si próprio e seja todavia ab aeterno (Ib., I, 9). Esta probabilidade torna-se certeza se se considerar a perfeição do poder, na beatitude e do amor divino. Esta perfeição implica a possibilidade de uma comunicação mediante a qual Deus possa difundir a abundância infinita da sua vida. Uma dualidade de pessoas torna-se necessária para que Deus não seja privado dessa comunicação, sem a qual a sua vida seria estéril e solitária (Ibid. III, 11). Mas uma dualidade não basta: a comunicação não é perfeita se não se pode difundir além de si, para uma terceira pessoa co-igual. A perfeição do amor pressupõe que tal possa estender-se a uma terceira pessoa que seja igualmente amada e que seja igual em dignidade e em potência. A perfeição do amor e em geral da vida divina requer portanto a trindade das pessoas divinas, sem a qual não haveria a integridade da sua plenitude (Ib., III, 11). A Trindade divina deve ser constituída por pessoas que tenham os nossos atributos. A perfeição da divindade implica a perfeição da Potência, a perfeição da Sabedoria, a perfeição do Bem. Assim como é omnipotente uma delas, assim são as outras; assim como uma delas é infinita, assim são as outras: assim como uma delas é Deus, assim são Deus também as outras. Mas existe apenas um só Deus, porque assim como as três pessoas são igualmente omnipotentes, assim as três são igualmente Deus. O que significa que as três pessoas tenham uma única e idêntica substância, ou melhor, que sejam uma única e mesma substância (Ibiã., III, 9). Enquanto que no homem existe mais que uma substância (alma e corpo) mas uma só pessoa, em Deus existe uma só substância e várias pessoas. À definição boeciana de pessoa, aceite já por Hugo como «substância individual de natureza racional», Ricardo acrescenta a determinação «dotada de existência incomunicável» (Ib. IV, 18). A interpretação trinitária de Ricardo constitui na escolástica uma fórmula fundamental que foi seguida sobretudo pela escola franciscana.
A ANTROPOLOGIA MÍSTICA
O pressuposto de Ricardo é a unidade e a simplicidade da natureza humana. A alma é uma essência simples e espiritual que comunica ao corpo vida e sensibilidade: A alma e o espírito não são no homem duas substâncias diversas, mas constituem uma única essência; o espírito é a faculdade superior da alma, mas não se distingue substancialmente dela. Tal como os objetos se dividem nas três classes do sensível, do inteligível (mundo espiritual) e do inteletível (Deus) assim se dividem em três faculdades os poderes da alma; imaginação, razão, inteligência. A função da imaginação é a de receber e conservar as percepções sensíveis. A razão é a capacidade de pensamento discursivo, que procede demonstrativamente de uma verdade para outra. A inteligência são os olhos espirituais que veem as coisas invisíveis na sua presença real, como os olhos da carne veem o que é visível (De contempl., III, 9).
Nestas três faculdades se baseia a via mística ao procurar a união com Deus. O pensamento (cogitado) baseia-se na imaginação; a meditação (meditatio) na razão e a contemplação (contemplado) na inteligência. «O pensamento vagueia lentamente por aqui e por ali, sem se preocupar com uma meta. A meditação tenta esforçadamente prosseguir através de obstáculos e dificuldades na direção de um fim. A contemplação circula em voo livre, por onde quer que expanda o seu ímpeto e com uma extraordinária agilidade.
A contemplação é o último estádio da via mística. Duas são as suas condições fundamentais. Em primeiro lugar, a pureza de coração, condicionada pela virtude; em segundo lugar, o conhecimento de si. Ricardo compara a razão e a vontade do homem às duas mulheres de Jacó, Raquel e Lia. Tal como Jacó se uniu primeiro a Lia e dela teve sete filhos e sete filhas, e em seguida desposou Raquel e gerou dela, assim também a vontade humana é primeiro fecundada pelo espírito de Deus, que gera nela as virtudes; em seguida a razão humana, desposando a graça divina, gera o conhecimento mais alto. As virtudes são portanto os filhos de Lia, mas a vida mística começa apenas com o conhecimento que a alma tem de si. O último filho de Jacó e de Raquel, Benjamim, é o símbolo desse conhecimento de si, que é a verdadeira e própria introdução à união mística com Deus (De praep. ad contempl., 67-71). «Aprenda o homem a conhecer o que há nele de invisível, antes de conhecer o que há de invisível em Deus. Se não te podes conhecer a ti próprio, como pretendes poder conhecer aquele que está acima de ti?» (lb., 7).
Seis são os graus fundamentais da contemplação. O primeiro, in imaginatione et secundum imagina-tionem, considera o mundo sensível como tal, relacionando a perfeição e a beleza com a potência, sabedoria e bondade de Deus. O segundo, in imaginatione et secundum rationem, considera o mundo sensível nos seus dois princípios e assim nos conduz do mundo sensível ao mundo inteligível. O terceiro grau, in ratione et secundum imaginationem, relaciona o sensível com o supra-sensível e assim tem em consideração as ideias das coisas. O quarto grau in ratione et secundum rationem considera a alma e os espíritos puros, como sejam os anjos. O quinto grau, supra rationem et non praeter rationem, dirige-se a Deus na medida em que ele é cognoscível pela nossa razão. O sexto e último grau, supra rationem et praeter rationem, considera os atributos da divindade que transcendem em absoluto a razão humana, por exemplo, os que se referem à Trindade (De contempl., I, 6).
Os graus de ascese progressiva da alma para a verdade suprema podem distinguir-se também pela qualidade subjetiva dos seus atos. Alguns deles implicam, com efeito, o dilatar-se (dilatatio) da mente, outros o levantar-se (sublevatio) outros a alienar-se (alienado) da mente de si mesma. O dilatar da mente consiste em expandir-se e em agudizar as suas capacidades, sem que, no entanto, transcendam os limites humanos. O elevar-se da mente é o estado em que ela permanece iluminada pela luz divina e transcende os limites da capacidade humana. Finalmente, o alienar-se da mente é o abandono da memória de todas as coisas presentes e a transfiguração num estado em que já não há nada de humano (Ib” V, 2). O primeiro destes graus é devido à atividade humana, o terceiro apenas à graça divina, o segundo a uma e a outra. No terceiro grau, está o ponto culminante da contemplação, o êxtase ou excessus mentis. Sem invólucro e sem sombras, não mais per especulum et in enigmate, o homem contempla então a luz da sabedoria divina. Neste estado não existe já sensibilidade, nem memória das coisas externas e a própria razão humana se cala. A mente é arrebatada íá de si própria e todos os limites da razão são superados. Morre Raquel e nasce Benjamim. A morte de Raquel significa o desaparecimento da razão (De praep. ad contemp., 73).
A mística de Ricardo é a expressão fundamental e típica do misticismo medieval. Ricardo viu nitidamente que a via mística conduz à abolição de todos os limites humanos para colocar o homem face a face com Deus.