Abbagnano Hugo de São Victor

Nicola Abbagnano — História da Filosofia
e Razão
S. Bernardo contrapõe a via mística à investigação racional. Aquela é considerada como a via da humanidade e da renúncia a toda a autonomia humana. No entanto, estas duas vias parecem fundir-se harmoniosamente em Hugo de S. Victor e concorrem para fazer dele uma das personalidades mais notáveis do mundo medieval. Nasceu em 1096 em Hartingan na Saxônia e formou-se no convento de Hamersleben, perto de Halberstadt. A partir de 1115 foi para o convento de S. Victor em Paris e de 1133 a 1141, ano da sua morte, foi professor naquele convento.

É, em primeiro lugar, autor de uma introdução à filosofia e à teologia com o título Eruditionis didascalicae libri VII ou, mais brevemente, Didascalion, cujos três primeiros livros são dedicados às artes liberais, os três seguintes à teologia, o último é um texto sobre a meditação. Dos quatro livros de De anima apenas o quarto lhe pertence, enquanto o segundo pertence provavelmente a Alquério de Clairvaux. A sua obra maior é o De sacramentis christianae fidei que parece ter sido escrita entre 1136 e 1141. Esta obra é a primeira summa teológica medieval. O objetivo declarado da obra é o de fornecer um fundamento à interpretação alegórica dos mistérios cristãos. Com efeito, Hugo de S. Victor distingue em tais mistérios a alegoria que é o seu significado fundamental e a história que é o seu significado literal. Pretende assim fornecer um guia para se poder ler as Escrituras com critério seguro e conseguir-se uma reconstrução alegórica que se subtraia à disparidade de pareceres. Juntamente com estas obras de investigação escolástica, escreveu também numerosos opúsculos místicos: De arca Noe mystica, De arca Noe morali, De arrha animae, De vanitate mundi, etc.

A atitude de Hugo de S. Victor perante a ciência é decididamente oposta à de S. Bernardo. Nada há de inútil no saber: «Aprende tudo, afirma, verás que nada é supérfluo» (Didasc., VI, 3). A própria ciência profana é útil à ciência sagrada, à qual está subordinada: «Todas as artes naturais servem a ciência divina e a sapiência inferior, ordenada com retidão, conduz à superior» (De sacram., I, prol. 5, 6). Em vez de contrapor entre si a ciência profana e a ciência sagrada, a mística e a investigação racional, Hugo de S. Victor procura estabelecer entre elas um equilíbrio harmônico e de as coordenar num único sistema. Desse modo tenta coordenar a via mística com a investigação racional: «Há dois modos e duas vias através das quais Deus, que permanece primeiramente oculto no coração do homem, pode ser conhecido e julgado: a razão humana e a revelação divina. A razão humana empreende de duas formas a investigação de Deus; em si e nas coisas que estão fora de si. Do mesmo modo a revelação de Deus atua de duas formas a fim de dissipar a ignorância e a dúvida do homem: com a iluminação interior e com a doutrina exteriormente transmitida e confirmada pelos milagres» (lb” I, 3, 3). Os caminhos da razão são dados pela natureza, os da revelação pela graça. Uma e outra servem-se tanto do interior como do que é exterior ao homem para o conduzir até Deus. E como se se coordenam entre si, tendo em vista o fim único do conhecimento de Deus, a investigação racional e a revelação, assim se coordenam também entre si para o mesmo fim os objetos da investigação humana. Hugo de S. Victor distingue todos os objetos possíveis em quatro categorias, determinadas pelas suas relações com a razão humana. «Certas coisas derivam da razão, outras são conformes com a razão, outras estão acima da razão, outras ainda estão contra a razão. As coisas que derivam da razão são necessárias; as que são conformes à razão, prováveis; as que estão acima da razão, admiráveis; e as contrárias à razão, impossíveis. As primeiras e as últimas excluem a : as primeiras, derivando da razão, são absolutamente conhecidas e não podem ser criadas porque se conhecem, as outras não podem ser criadas porque a razão não pode assentar nelas. Portanto, podem ser apenas objeto de as coisas que são conformes com a razão e as que estão acima da razão. Nas primeiras, a é sustentada pela razão e é aperfeiçoada pela : se a razão não compreende a sua verdade, também não cria obstáculos a que a acredite nelas. Nas coisas que estão acima da razão, a não pode ser ajudada pela razão, que não compreende aquilo em que a crê; há nelas, no entanto, qualquer coisa que exorta a razão a venerar a , ainda que não a compreenda» (Ib., I, 3, 30). O domínio da investigação racional é agora rigorosamente distinto do da , como domínio da necessidade lógica absoluta: a não tem lugar no que é demonstrável ou evidente. Mas, por outro lado, a não se opõe à razão porque o seu objeto seja incrível, mas porque é provável ou admirável, o que se aproxima da razão ou a transcende, sem no entanto a negar. O princípio de S. Tomás, o da graça que completa a natureza sem a destruir, encontra aqui pela primeira vez uma clara formulação. A esta classificação dos objetos do conhecimento, corresponde a classificação das correspondentes posições subjetivas. Estas posições são : a negação, a opinião, a e a ciência. A negação, a opinião, e a dirigem-se não à coisa, mas ao que se ouve dizer da coisa. Apenas na ciência a própria coisa está realmente presente; a ciência é conhecimento perfeito, porque convalidade e garantida pela presença própria do seu objeto (Ib. I, 10, 2).

Viu-se já como a ciência é também o único conhecimento necessário; e esta necessidade vem-lhe da lógica que é o seu instrumento indispensável. As ciências experimentais, como a física, pressupõem as ciências puramente lógicas, tal com a própria lógica e a matemática; uma vez que a experiência por si só é falaz e só na pura razão existe e garantia indiscutível da verdade.

Hugo de S. Victor extrai da obra de Abelardo a teoria aristotélica da abstração. A matemática e a física constituem, graças à abstração, o seu objeto. A matemática considera distintamente os elementos que nas coisas naturais se encontram confusos entre si; e assim, ainda que, na realidade, a linha não exista sem a superfície e o volume, a razão considera, na matemática, a linha em si, prescindindo da superfície e do volume. Isto, porque a razão frequentemente considera as coisas, não como elas são, mas como podem ser, isto é: não em si mesmas, mas em referência a ela própria (Didasc., II, 18). Do mesmo modo, a física considera distintos uns dos outros os elementos que nos corpos do mundo se encontram confundidos, isto é, o fogo, a terra, a água e o ar; e julga todos os corpos como um produto da composição e da força de tais elementos (Ib., II, 18). Como muitos representantes da escola de Chartres, Hugo de S. Victor admite a composição atômica dos elementos (De sacram., I, 6, 37) e afirma o princípio da conservação da matéria, princípio que apoia na autoridade de Pérsio (Sat., III, 84): de nihilo nihil, in nihilum nil posse reverti (Didasc., I, 7).


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