Abade Arsênio IV

Apoftegmas
Seleção e tradução de D. Estevão Bettencourt

DO ABADE ARSÊNIO (cont.)

37. Um dos padres foi ter com o Abade Arsênio. Quando bateu à porta, o ancião abriu, julgando que era o discípulo que lhe servia. Notando, porém, que outro era o visitante, caiu sobre a face. Este disse-lhe: «Levanta-te, Abade, para que te saúde». Respondeu o ancião: «Não me levantarei, enquanto não te fores». E, rogado durante muito tempo, não se ergueu, até que o visitante partiu.

38. A respeito de certo irmão que fora à Cétia para ver o Abade Arsênio, narravam o seguinte : Entrou na igreja e pedia aos clérigos que lhe fizessem encontrar o Abade Arsênio. Disseram-lhe: «Sossega um pouco, irmão, e hás de vê-lo». O mesmo retrucou: «Nada provarei enquanto não o encontrar».

Ora, já que a cela de Arsênio era distante, mandaram um irmão que apresentasse o peregrino. Tendo batido à porta, entraram, saudaram o ancião e sentaram-se em silêncio. Disse então o irmão da igreja: «Eu me vou, rogai por mim». O irmão peregrino, não tendo ânimo para falar ao ancião, disse: «Vou também eu contigo». E saíram juntos. Este rogou então àquele: «Leva-me a ver o Abade Moisés, que foi ladrão». E foram ambos ter com este, o qual os recebeu com alegria e, depois de os haver tratado amigavelmente, os despediu.

Disse então o irmão que conduzira o outro : «Eis, levei-te para a cela do estrangeiro e para a cela do egípcio. Qual dos dois te agradou?» Respondeu : «Sem dúvida, agradou-me o egípcio».

Ao ouvir o fato, um dos padres orou a Deus nestes termos: «Senhor, faze-me entender isto: um foge por causa do teu nome; o outro recebe no colo por causa do teu nome». E eis que lhes foram mostradas duas grandes naves no rio: numa viu o Abade Arsênio e o Espírito de Deus a navegar em sossego; na outra viu navegar o Abade Moisés e os anjos de Deus, os quais a Moisés davam a comer favos de mel.

39. Contava o Abade Daniel: «Quando o Abade Arsênio estava para morrer, mandou-nos: ‘Não vos preocupeis em fazer ágapes em sufrágio de minha alma 1 ; pois, se pratiquei a caridade (agape); em meu favor, hei de a encontrar’».

40. Quando o Abade Arsênio estava próximo da morte, perturbaram-se os seus discípulos. Disse-lhes então: «Ainda não veio a hora; quando vier, eu vo-lo direi. Hei de ser julgado convosco no tremendo tribunal, caso deis a alguém o meu corpo». Retrucaram: «Que faremos, pois que não sabemos sepultar?» Respondeu o ancião: «Não sabeis passar uma corda em torno do meu pé e levar-me para a montanha?» Era esta a frase habitual do ancião : «Arsênio, porque te retiraste do mundo? De ter falado, arrependi-me muitas vezes; de me ter calado; nunca». Quando estava próximo da morte, viram-no os irmãos a chorar, e disseram-lhe: «Temes também tu, de fato, ó Pai?» Respondeu-lhes: «Na realidade, o temor que nesta hora experimento, me acompanha desde que me tornei monge». Nestes termos adormeceu.

41. Diziam que, durante todo o tempo de sua vida, estando ele sentado a fazer seu trabalho manual, tinha um pedaço de pano sopre o peito por causa das lágrimas que lhe corriam dos olhos. Tendo ouvido que morrera, disse o Abade Poimém em prantos: «Feliz és tu, Abade Arsênio, pois choraste a ti mesmo aqui neste mundo ; com efeito, aquele que não chora a si mesmo aqui, lá para sempre há de chorar. Portanto, seja aqui por espontânea vontade, seja lá por causa dos tormentos, ê impossível não chorar».

42. Referiu a respeito dele o Abade Daniel que jamais quis explicar alguma questão da Sagrada Escritura, embora o pudesse se quisesse. Também não era pronto a escrever cartas. Quando, periodicamente, ia à igreja, sentava-se atrás da coluna para que ninguém visse a sua face nem ele olhasse para alguém. O seu aspecto era angélico, como o de Jacó; tinha a cabeleira totalmente branca, o corpo gracioso ; era descarnado ; trazia barba longa, que lhe pendia até o ventre; os cílios dos olhos lhe tinham caído por tanto chorar. Fora de alta estatura; encurvou-a, porém, a velhice. Chegou à idade de noventa e cinco anos. Quarenta anos passou no palácio de Teodósio Magno, de santa memória, fazendo-se como pai dos digníssimos (príncipes) Arcádio e Honório; na Cétia passou quarenta anos: dez, em Troas na Babilônia superior, diante de Mênfins; três, em Canopo de Alexandria; e, os outros dois anos, ele os viveu de novo em Troas, onde adormeceu, tendo consumado em paz e no temor de Deus o seu curso, porque «era homem bom, cheio do Espírito Santo e de fé» (Atos 11, 24). «Deixou-me a sua túnica de pele, a sua camisa branca de cilício e as suas sandálias de folhas de palmeira; coisas que eu, embora indigno, usei a fim de ser abençoado».

43. Contou de novo o Abade Daniel a respeito do Abade Arsênio: «Certa vez chamou os meus Pais, os Abades Alexandre e Zoilo, e, humilhando-se, disse-lhes: «Pois que os demônios me assaltam e não sei se no sono me insinuam sorrateiramente, ao menos esta noite lutai comigo e observai se adormeço em vez de vigiar’ E assentou-se um à sua direita, o outro à esquerda, ficando todos em silêncio a partir do anoitecer. Depois disseram os meus Pais: ‘Nós dormimos e nos levantamos, e não observamos se adormeceu. De manhã cedo, porém, (Deus sabe se Arsênio o fez apenas para que julgássemos que adormecera ou se, de verdade, a força do sono o sobrepujou) soprou três vezes e logo se levantou, dizendo: Realmente dormi. Responde: ‘Não sabemos’».

44. Em dada ocasião foram procurar o Abade Arsênio alguns anciãos, que muito insistiram para vê-lo. Arsênio abriu-lhes. E pediram-lhe que lhes dissesse uma palavra a respeito daqueles que vivem em solidão e com ninguém se avistam. Respondeu-lhes o ancião: «Enquanto a virgem está em casa de seu pai, muitos são os que a querem desposar; depois, porém, que outros a louvam, assim já não goza da estima que possuía antes, quando vivia oculta. Tais são também as coisas da alma: se são publicadas, não podem satisfazer a todos».




  1. “ágape” (= caridade) chamava-se uma Refeição de caráter religioso sacro, que se costumava fazer nas comunidades cristãs antigas. Pairam muitas dúvidas sobre o sentido ‘exato, a história do ágape e as relações deste com a Eucaristia. Certo é que, em alguns lugares, o ágape, acompanhado de preces, era celebrado em memória e sufrágio dos defuntos, o que parece pressuposto nesta passagem dos Apoftegmas. Mais frequentemente a refeição do ágape era realizada, a título de esmola para socorrer à indigência de irmãos pobres, órfãos, viúvas.