Abade Arsênio III

Apoftegmas
Seleção e tradução de D. Estevão Bettencourt

DO ABADE ARSÊNIO (cont.)

32. Quando o Abade Arsênio residia nas regiões do Egito inferior, já que era muito procurado pela gente, julgou bom abandonar tal morada. Sem, pois, levar coisa alguma consigo, foi ter com os seus discípulos faranitas 1 Alexandre e Zoilo. Disse então a Alexandre: «Levanta-te, e entra num barco». Este assim fez. E a Zoilo disse: «Vem comigo até o rio, e procura-me uma nave que desça para Alexandria; a seguir, embarca-te também tu e reúne-te a teu irmão». Zoilo, perturbado por esta ordem, calou-se.

Assim se separaram um do outro Arsênio e Zoilo.

Por conseguinte, o ancião desceu para a região de Alexandria, onde veio a adoecer gravemente. No entretempo, os seus discípulos diziam um para o outro: «Será que algum de nós entristeceu o ancião, de modo que nos tenha deixado ?» Nada, porém, encontravam em si que os acusasse, nem se lembravam de lhe ter desobedecido alguma vez.

Ora, tendo recuperado a saúde, o ancião disse: «Irei para junto de meus Pais». Assim embarcou-se, e foi para a região de Petra, onde se achavam os seus discípulos. Quando, porém, se encontrava perto do rio, uma jovem etíope chegou-se, e tocou a sua melote 2. O ancião repreendeu-a. A jovem replicou: «Se és monge, retira-te para o monte». Então o ancião, compungido por esta palavra, dizia em si mesmo: «Arsênio, se és monge, retira-te para o monte». Nessa hora chegaram-lhe ao encontro Alexandre e Zoilo. Como estes lhe caíssem aos pés, também o ancião se precipitou por terra; de ambas as partes puseram-se a chorar. Arsênio então falou,: «Não ouvistes que estive doente?» Responderam-lhe: «Sim». E o ancião a retrucar: «E por que não me fostes ver?» O Abade Alexandre disse: «A tua partida dentre nós não nos foi proveitosa; muitos mesmo ficaram mal impressionados, dizendo: ‘Se não tivessem desobedecido ao ancião, não se teria ido’». Respondeu-lhes: «De novo, pois, hão de dizer os homens: ‘A pomba não encontrou pouso para seus pés, e voltou a Noé dentro da arca». Desta forma se uniram em boa paz, e permaneceu com eles até o fim da vida.

33. O Abade Daniel referiu ter o Abade Arsênio contado o seguinte, como que falando de ou* trem; talvez, porém, se tratasse dele mesmo: «Estando certo ancião na cela, desceu a ele uma voz que dizia: ‘Vem, mostrar-te-ei as obras dos homens’». Tendo-se, pois, levantado, saiu, e quem falara, levou-o para certo lugar, onde lhe mostrou um etíope que cortava lenha, e fizera um grande fardo; tentava carregar a este, mas não o podia; ora, em vez de tirar algo do fardo, de novo se punha a cortar» lenha, e acrescentava-a à carga. Isto, ele o ia fazendo por muito tempo.

Tendo caminhado mais um pouco, aquele que falava, de novo mostrou-lhe um homem colocado ã margem de um lago; hauria água, e derramava-a numa vasilha furada, a qual deixava a água recair no lago.

Disse-lhe de novo: «Vem, mostrar-te-ei ainda outra coisa». Viu então um templo e dois homens montados em cavalos; postos um em face do outro, carregavam um lenho atravessado entre ambos; queriam entrar pela porta, mas não o conseguiam, por estar o lenho atravessado; um desses homens não se abaixou diante do outro a fim de colocar o lenho em linha reta; por isto permaneceram do lado de fora da porta. «Estes são», disse, «os que carregam com soberba uma espécie de jugo de justiça, e não se abaixam a fim de se tornarem retos e caminhar a via humilde de Cristo; por isto permanecem fora do reino de Deus. Aquele que cortava lenha, é o homem réu de muitos pecados, que, em vez de fazer penitência, acrescenta novas iniquidades aos seus pecados. E aquele que hauria água, é o homem que pratica boas obras, mas, por lhes ter misturado algo de mau, perdeu também as boas obras. É preciso, pois, que todo homem exerça a vigilância sobre as suas ações, a fim de que não labute em vão».

34. O mesmo contou que certa vez alguns dos Padres de Alexandria foram ver o Abade Arsênio; um deles era tio do velho Timóteo, arcebispo de Alexandria chamado «o Pobre», e levava consigo um dos seus sobrinhos. Naquela ocasião o ancião achava-se doente, e não os quis receber, para que também outros não o fossem procurar e o importunassem. Estava então em Petra de Troas. Aqueles se foram, entristecidos.

Ora deu-se uma invasão de bárbaros, e Arsênio permaneceu, de espontânea vontade, nas regiões do Egito inferior. Sabendo disto, foram de novo visitá-lo, e Arsênio os recebeu com alegria. Disse-lhe então o irmão que estava com eles: «Não sabes, ó Abade, que te fomos procurar em Troas e que não nos recebestes?» Respondeu-lhe o ancião: «Vós comestes pão, e bebestes água; mas eu, ó filho, em verdade nem pão nem água tomei, nem me assentei, castigando a mim mesmo, até que tive a certeza de que havíeis chegado ao vosso destino, pois por causa de mim vos tínheis fatigado. Contudo, desculpai-me, irmãos!» Eles, consolados, se foram.

35. O mesmo contava: «Certo dia chamou-me o Abade Arsênio, e disse-me: ‘Reconforta teu Pai, a fim de que, quando se for para o Senhor, ore por ti e sejas bem sucedido’».

36. Diziam a respeito do Abade Arsênio que, certa vez, tendo ele adoecido na Cétia, o presbítero o levou para a igreja e o colocou sobre um estrado forrado de peles, pondo pequeno travesseiro debaixo da cabeça dele. Ora um dos anciãos foi visitá-lo, e, vendo-o sobre o estrado com um travesseiro debaixo da cabeça, escandalizou-se, e disse: «Este é o Abade Arsênio? Em tal leito é que repousa?» Então o presbítero, tomando-o à parte, perguntou-lhe: «Qual era teu trabalho em tua aldeia?»

– «Eu era pastor».

– «Como, então, levavas a vida?»

– «Vivia em muita fadiga».

– «E agora como levas a vida na cela?»

– «Gozo de mais repouso».

– «Vês este Abade Arsênio? No século era pai de Imperadores 3, e lhe assistiam mil servos, que se cingiam de cinturões de ouro, traziam todos joias e vestes de seda, tapetes de grande preço se estendiam sob os seus pés. Tu, ao contrário, como pastor, não tinhas no mundo o bem-estar que tens agora, ao passo que este não tem aqui o luxo de que desfrutava no mundo. Por conseguinte, eis que tu gozas de alívio, enquanto este é atribulado».

Aquele, ouvindo tais palavras, foi compungido, e prostrou-se com arrependimento, dizendo: «Perdoa-me, Abade, pequei, pois, sem dúvida, tal é a verdadeira via: este veio para a humilhação, ao passo que eu vim para o alívio». E, edificado, retirou-se o ancião.

  1. Da região de Fará — península do Sinai.[]
  2. Manto dos antigos monges, originariamente feito de pele de carneiro.[]
  3. Antes de retirar-se para o deserto era oficial graduado na corte, preceptor dos príncipes Arcádio e Honório.[]