Abade Arsênio II

Apoftegmas
Seleção e tradução de D. Estevão Bettencourt

DO ABADE ARSÊNIO (cont.)

23. O Abade Daniel, o discípulo do Abade Arsênio, narrou: «Certa vez, encontrando-me eu perto do Abade Alexandre, acometeu-o uma dor, em virtude da qual ele se estendeu por terra, olhando para o alto. Aconteceu, então, que o bem-aventurado Arsênio se chegou para lhe falar, e o viu estendido. Tendo terminado de falar como intencionava, ainda acrescentou: «E quem era o secular que aqui vi?» Perguntou o Abade Alexandre: «Onde o viste ?» Respondeu : «Quando eu descia da montanha, olhei aqui para a gruta, e vi alguém estendido a fitar o céu». Alexandre atirou-se-lhe, então, aos pés, dizendo o seu arrependimento: «Perdoa-me, era eu; pois a dor me dominava». Respondeu-lhe o ancião : «Então eras tu ? Está bem. Julguei que fosse um secular; por isto é que perguntei».

24. De outra feita disse o Abade Arsênio ao Abade Alexandre: «Quando tiveres acabado de cortar os teus ramos de palmeira, vem comer comigo; se, porém, chegarem peregrinos, come com eles». Ora o Abade Alexandre trabalhava num ritmo sempre igual e lento. Vinda a hora de comer, ainda tinha ramos por cortar; querendo cumprir a ordem do ancião, resolveu acabar primeiramente Os seus ramos. O Abade Arsênio, então, vendo que tardava, comeu; julgava aue talvez lhe tivessem ocorrido peregrinos. Quando à tarde terminou o seu trabalho, o Abade Alexandre foi-se. Perguntou-lhe então o ancião : «Recebeste hóspedes ?»

– «Não».

– Por que então não vieste ?»

– «Porque me disseste: ‘Quando acabares de cortar os téus ramos, vem’. Ora, observando a tua ordem, não vim, pois há pouco é que terminei o trabalho».

O ancião admirou a fidelidade do discípulo e disse-lhe: «Rompe logo o jejum, para que digas o teu ofício e tomes a tua água; se assim não fizeres, em breve adoecerá o teu corpo».

25. Certa vez chegou o Abade Arsênio a um lugar onde havia caniços, que o vento agitava. Disse então o ancião aos irmãos : «Que agitação é essa?» Responderam-lhe: «É de caninos». Acrescentou o ancião: «Se alguém que está tranquilamente sentado, ao ouvir o canto de um pardal, não conserva a mesma tranquilidade era seu coração, quanto mais vós não vos conservareis tranquilos, tendo ao lado a agitação desses caniços ?»

26. Contava o Abade Daniel que alguns irmãos, devendo ir à Tebaida 1 por motivo de fios de linho, haviam dito : «Dada a ocasião, vejamos também o Abade Arsênio». Ora o Abade Alexandre entrou, e referiu ao ancião: «Irmãos vindos de Alexandria querem ver-te». Respondeu o ancião : «Pergunta-lhes por que razão vieram». Informado de que tinham ido à Tebaida por motivo de fios de linho, comunicou isto ao ancião. Este respondeu : «Sem dúvida, não hão de ver a face de Arsênio, pois não por causa de mim, mas por causa do seu trabalho é que vieram. Faze-os repousar e, a seguir, despede-os em paz, dizendo-lhes que o ancião não pode receber».

27. Certo irmão foi ter à cela do Abade Arsênio na Cétia, e, olhando pela porta, viu o ancião como que todo em fogo; tal irmão era digno de ver isto. Quando o mesmo bateu, apareceu o ancião e notou que o irmão estava como que terrificado. Perguntou-lhe então : «Há muito tempo que estás batendo? Viste alguma coisa aqui dentro?» Respondeu: «Não». Puseram-se, pois, a conversar e, a seguir, Arsênio o despediu.

28. Quando certa vez o Abade Arsênio morava em Canopo, chegou de Roma, para vê-lo, uma virgem de linhagem senatorial, muito rica e temente a Deus. Acolheu-a o arcebispo Teófilo, ao qual ela pediu que convencesse o ancião de a receber. Teófilo, indo ter com o Abade, rogou-o nestes termos: «Tal jovem de família senatorial veio de Roma e quer ver-te». O ancião, porém, não consentiu em recebê-la. Quando isto lhe foi anunciado, ela mandou arrear os cavalos, dizendo: «Confio em Deus que hei de o ver. Pois não foi para ver um homem que vim, já que também na nossa cidade há muitos homens; mas foi para ver um profeta que vim». E, quando chegou às proximidades da cela do ancião, este, por disposição de Deus, passava alguns momentos de lazer fora da cela. Vendo-o, ela caiu-lhe aos pés. Este levantou-a com indignação, e fitou-a dizendo: «Se queres ver o meu semblante, ei-lo; olha». Ela, porém, tomada de confusão, não fixou o rosto do ancião. Disse então Arsênio: «Não ouviste falar das minhas obras? Para estas é que é preciso olhar. Como ousaste fazer tão longa viagem por mar? Não sabes que és mulher? Para parte nenhuma e em tempo nenhum deves sair. Ou será que vieste, para que, voltando a Roma, possas dizer ¡as outras mulheres: ‘Vi Arsênio’; e façam do mar a via de mulheres que venham ter comigo?» Ela respondeu: «Se aprouver ao Senhor, não permitirei que alguém venha.aqui; mas reza por mim, e recorda-te sempre de mim». Em resposta disse ele: «Peço a Deus que apague de meu coração a recordação de ti». Tendo, ouvido isto, ela se foi perturbada; e, quando chegou à cidade, incidiu em febre, dada a sua tristeza. Foi então referido ao bem-aventurado Teófilo arcebispo que ela estava doente. Indo ter com ela, este perguntou-lhe o que tinha. Ela explicou: «Oxalá não tivesse vindo aqui; pois disse ao ancião: ‘Lembra-te de mim!’, e ele respondeu-me: ‘Rogo a Deus para que de meu coração se apague a recordação de ti’. Eis que agora morro desta tristeza». Disse-lhe o arcebispo: «Não sabes que és mulher, e que pelas mulheres o inimigo combate os santos? Por isto é que o ancião falou de tal forma. Pela tua alma, porém, ele rezará sempre». Assim se tranquilizou o espírito da virgem, a qual com alegria voltou para a sua pátria.

29. Narrou o Abade Daniel a respeito do Abade Arsênio que certa vez foi ter com ele um magistrado. Este lhe levava o testamento de um seu parente, de linhagem senatorial, o qual lhe deixava uma herança muito avultada. Arsênio, tendo-se apoderado do testamento, queria rasgá-lo. Então o magistrado caiu-lhe aos pés, dizendo: «Rogo-te, não o rasgues, pois que me seria cortada a cabeça». Respondeu-lhe o Abade Arsênio: «Eu morri antes dele; ele morreu há pouco». E mandou de volta o testamento, sem aceitar coisa alguma.

30. Diziam também a respeito dele que, no fim do sábado, quando começava a luzir o domingo, deixava o sol atrás de si e estendia as mãos ao céu em oração, até que de novo brilhasse o sol sobre a sua face. Desta forma vivia ele 2.

31. Diziam do Abade Arsênio e do Abade Teodoro de Fermes que, mais do que todos, odiavam a glória dos homens. Por conseguinte, o Abade Arsênio não recebia facilmente alguém; o Abade Teodoro recebia, sim, mas apresentava-se como uma espada.




  1. Região do Egito 

  2. Este apoftegma supõe que o domingo comece com o pôr do sol .de sábado (primeiras vésperas) e significa que Arsênio passava a noite inteira de sábado para domingo em vigília.