Michel Henry
Mas então, dir-se-á, se a realidade se concentra na vida transcendental a ponto de se identificar com ela e de não se fazer sentir senão em seu páthos invisível, não é por conseguinte este mundo que é vazio? A inversão radical dos conceitos relativos à realidade operada pelo cristianismo não vai até voltar-se contra ele mesmo? Já não se pode censurar ao cristianismo uma fuga da realidade se a realidade reside na vida, se o corpo real é o corpo vivente – não este objeto visível que uma tradição ingênua toma desde sempre por nosso corpo verdadeiro. Mas não é o visível inteiro que, despojado de sua pretensão de exibir em si a realidade, toda realidade concebível, se encontra agora relegado ao domínio das sombras? Que fazer do mundo reduzido a um falacioso jogo de aparências? Que fazer nele, que já não é nada? O reproche dirigido nos tempos modernos ao cristianismo pelos pensamentos pós-hegelianos quase não se deslocou e, de certo modo, permanece [339] válido. Fuga da realidade, o cristianismo não o é certamente, se toda realidade se encontra na vida invisível. Mas fuga do mundo mais que nunca se, privado de realidade, o mundo, este mundo é entregue à aparência. O cristianismo, Cristo menos que nunca cai sob a crítica de Hegel: não é ele em todo caso – possa ou não identificar-se com a realidade – o “Oposto do mundo”?
É aqui que é preciso dizer um pouco mais sobre este último, se se quer compreender como, longe de nos desviar do mundo, o cristianismo constitui, ao contrário, a via de acesso que conduz ao que é real nele – à única realidade. Lembremos nossas análises preliminares sobre a verdade do mundo. Elas tinham mostrado como esta Verdade se desdobra entre o aparecer do mundo e o que aparece nele. O aparecer do mundo, por um lado: seu “lá fora”, este horizonte de visibilidade em que todas as coisas do mundo se mostram a nós. O que aparece nele, por outro lado: todas as coisas que, mostrando-se nele, constituem o “conteúdo” deste mundo. Ora, é este conteúdo do mundo o que constitui sua realidade. Tal conteúdo é duplo: social, natural.1 É o conteúdo social que é o mais importante. Concentremos a atenção nele. (Michel Henry MHSV)
Paul Nothomb: Excertos de ÇA OU L’HISTOIRE DE LA POMME RACONTÉE AUX ADULTES [PNHP]
Se a Criação na Bíblia é a obra de Deus, Adão aí contribui ou a completa, em a fazendo existir. Temos um exemplo chocante no relato quando do episódio da denominação dos animais. É dito que Deus “concebeu” “retirado da adama”, como no caso de Adão, salvo que desta vez não é questão de afar (“Pó”) que caracteriza o Homem Um, e múltiplo todos os animais dos campos e os pássaros do céu, para ver como Adão vai nomear cada um deles. Até aí, embora “concebidos” por Deus não existem, o texto escamoteia o pronome pessoal os concernindo, eles não são, se ouso dizer, senão virtuais (Gen 2,19). É a descoberta por Adão do poder das palavras, da linguagem que lhe é própria e que recebeu com sua “consciência de existir” (Gen 2,7) mas da qual se serve pela primeira vez como “a ajuda em face dele” que Deus lhe anunciou e que não é a “mulher” da tradição e da estória da maçã contada às crianças. É a palavra, o pensamento conceitual que lhe permite “inventar” o mundo ao redor dele, mas que não é suficiente para romper sua solidão vis a vis dos outros “ele mesmo” que o cercam.
“Mas para Adão ele não achou ajuda em face dele” (Gen 2,20). Quem não encontrou ajuda em face dele, quer dizer linguagem comum? Adão. Há portanto um outro Adão. Há um número indeterminado, infinito mesmo posto que ele é “Um e múltiplo”.
O homem não vê, não conhece o mundo criado por Deus. Ele não vê, não conhece senão as representações que lhe dá seu entendimento. É o que se chama a realidade, a “realidade intuitiva” que é por definição subjetiva. E não objetiva. Obra do homem. Do ponto de vista da cronologia, é este que tem razão, e não o Relato dos Seis Dias nem a teoria da evolução darwiniana, que postulam que a realidade existe fora do homem. Se ela existe não é a nossa, e não podemos senão imaginá-la. Mas como não podemos a imaginar, senão através de nossas percepções, nosso entendimento e nossas representações, ela disto não difere exteriormente.
Todavia, no Relato dos Seis Dias, que parece recontar uma cosmogonia “objetiva”, sua primeira palavra — o primeiro substantivo da Bíblia inteira é “cabeça” (traduzido por princípio). É na “cabeça” do homem que isso começa em realidade, parece advertir a Bíblia desde sua primeira palavra.
O “Isto” não é a Queda do mundo divino no mundo humano. É a Queda do mundo de Adão pó no mundo de Adão animal. Nada sabemos do mundo divino.
Frithjof Schuon
Frithjof Schuon: O ESOTERISMO COMO PRINCÍPIO E COMO VIA
A objetividade é a perfeita adaptação da inteligência à realidade objetiva. A interioridade é a concentração perseverante da vontade nesse “Interior” que, segundo a palavra de Cristo, coincide com o coração, cuja porta convém trancar após se ter entrado e que dá acesso ao “reino de Deus”, que está efetivamente “dentro de vós”.
No sentido elementar da palavra, a fé é o nosso assentimento a uma verdade que nos suplanta. Mas, espiritualmente falando, é o nosso assentimento, não aos conceitos transcendentes, mas às realidades imanentes ou, simplesmente, à Realidade; essa Realidade é a nossa própria substância.
- Uma reflexão sobre o conteúdo natural do mundo mostraria que, pelo viés da sensibilidade, também este conteúdo remete à vida.[↩]