O ponto de partida para nosso estudo do elemento místico no pensamento de Heidegger é o curso de palestras que Heidegger deu em Freiburg em 1955-56 e que ele publicou sob o título Der Satz vom Grund (GA10). O texto consiste em uma série de treze palestras do curso e um discurso de conclusão sobre o tema desse famoso princípio de Leibniz. “nada é sem razão” (nihil est sine ratione). Essas palestras, que são uma exposição lúcida e penetrante da visão de Heidegger sobre a natureza do fundamento e da razão, nem sempre recebem a atenção que merecem na literatura sobre Heidegger. Mas, como nossa discussão sobre a crítica de Versényi a Heidegger já sugere, GA10 é uma obra de especial pertinência para o presente estudo, e isso por duas razões.
(1) Em primeiro lugar, a crítica de Heidegger ao Princípio da Fundamentação não é, para ele, meramente uma crítica a Leibniz. Em vez disso, o princípio de Leibniz é uma pedra de toque de toda a tradição metafísica ocidental, ou seja, da história da filosofia e da razão no Ocidente. Pois o princípio de Leibniz não é o princípio de Leibniz (GA10), mas uma expressão da missão ou destino (Geschick) do Ser no Ocidente. O Ser fala em e por meio de Leibniz. O que vem à tona no pensamento de Leibniz tem estado presente desde o início na filosofia ocidental e está conosco ainda hoje, ou seja, a exigência de que uma lógica ou um fundamento seja apresentado para o que quer que seja considerado “verdadeiro”.
A importância de GA10 é que contém a análise de Heidegger desse princípio mais básico da metafísica. Após um exame minucioso do que esse princípio significava na própria filosofia de Leibniz, Heidegger avança, com uma análise de sua própria filosofia, para a teoria da verdade. Heidegger avança, com um grande show de virtuosismo, para demonstrar como esse princípio exerce uma influência decisiva sobre Kant e, além de Kant, sobre o século XX, a era do átomo, nosso próprio “tempo de necessidade”. Como Löwith observa sobre GA10:
. . . na palestra Der Satz vom Grund. a discussão do princípio tradicional do pensamento não é interrompida por acaso e incidentalmente por uma alusão dramática à situação histórica, mas é essencialmente inspirada por essa alusão e, de fato, de tal forma que a referência à necessidade da época, o perigo estabelecido da bomba atômica, deve explicar o perigo abissal (abgründige) de pensar de acordo com a autoridade do Princípio Fundamental (segundo o qual todo ente deve ter um fundamento em outro e, em última instância, em um ente superior). (Löw. 110)
A partir da formulação de Leibniz do Princípio da Fundamentação, Heidegger também retrocede até o logos grego, do qual ratio e Grund são as traduções. No logos grego, Heidegger encontrará um sentido mais primordial de “fundamento”. [O logos grego, por sua vez, orquestra todos os temas importantes na interpretação de Heidegger da história do pensamento ocidental e permite que ele desenvolva de forma penetrante sua crítica da razão filosófica.
(2) A segunda razão pela qual atribuímos tanta importância a GA10 reside no fato de que em nenhuma outra obra Heidegger faz uso tão aberto da tradição mística. A palestra central desse livro (Palestra V, GA10) é uma “elucidação” (Erläterung) não de Hölderlin, mas do verso do poeta místico Angelus Silesius, “A rosa não tem porquê”. Por meio desse verso, Heidegger nos mostrará a necessidade de um “salto” (Satz) do Princípio do Fundamento, como foi entendido pela metafísica, para uma nova e mais profunda compreensão dele. Esse salto é um salto para longe da compreensão metafísica do “por que” e do “porque”, representada por Leibniz, em direção à compreensão mística do mesmo, representada por Angelus Silesius. É nessa obra, juntamente com Gelassenheit, que Versényi afirma que o pensamento de Heidegger entra em um terceiro e decisivo estágio que rompe o equilíbrio ou a “dialética da correspondência” entre Ser e Dasein de que ele e Löwith falam. Nesse trabalho, afirma Versényi, a capacidade do Dasein para uma resposta dinâmica ao Ser é destruída. O Dasein se torna um suplicante humilde e passivo, aguardando o próximo movimento inescrutável do Ser. Portanto, um estudo minucioso desse texto é essencial se quisermos avaliar essa crítica dos escritos posteriores e aparentemente místicos de Heidegger.