Pai Nosso — Perdoai nossas dívidas
Misticismo Renano-Flamengo
Gheraert Appelmans: Glosa do Pater Noster
Uma outra palavra: «Perdoai-nos nossa dívida como perdoamos a nossos devedores»
Quem tem devedores, senão o Deus todo-poderosos em sua justiça? Todos os pecadores lhe são devedores. Pois ninguém não pode dizer dele mesmo em verdade que é sem pecado, logo não pode dizer que tem devedores. Assim ninguém não é sem dívida e não tem devedores, senão unicamente Deus e aqueles que ele resgatou por seu sangue puro.
Embora isso seja verdade, é também verdade que temos devedores. Notai bem como temos. O homem é por graça, de natureza, um ser dotado de inteligência e de discernimento. Se o homem, por sua vontade própria, se permite alguma falta de discernimento com o qual aflige seu irmão contra o discernimento, disto é devedor para com Deus, Deus, em sua livre justiça não quer nos remir nossa grande dívida antes que não tenhamos, por nossa livre vontade, remido a nosso irmão sua pequena dívida, pelo amor de Deus. E quando perdoamos, somos perdoados e se não perdoamos, não seremos jamais perdoados. Isso se dirige igualmente aos principiantes.
Vejamos ainda onde temos devedores. Quem atenta à honra de Deus, desonra todas as criaturas, assim o pecador é devedor de Deus e de todas as criaturas.
Posto que o próprio de Deus é de perdoar, como podemos perdoar? Assim como, pela graça de Deus, nossa vontade está unida à vontade de Deus, assim também Deus, em sua misericórdia, quer perdoar ao pecador, assim também perdoamos ao pecador em união com sua vontade.
Como podemos saber quando Deus perdoa ao pecador? Não podemos conhecer todas as obras de Deus, mas devemos querer puramente toda sua vontade e amá-lo amorosamente em todas suas obras. Assim, perdoamos com Deus. E isso se dirige também às pessoas boas!
O terceiro ponto concerne também os perfeitos que seguem o Cristo na pobreza do espírito.
A pobreza em espírito, é de nada ter e de nada ter de seu próprio nada. Esses possuem todas as coisas em toda propriedade e perdoam o mais em toda clareza, pois «o Reino dos céus é deles», diz o Cristo. E esse são perdoados claramente, pois o Pai não perdoa a ninguém senão no Filho e para o Filho.
Assim como o Filho tencionou todas as suas forças em direção a obediência ao Pai (em portando) nosso fardo e que por causa de nossa falta, sofreu a morte amarga do amor, assim também seus verdadeiros discípulos tencionam suas forças na mesma obediência ao Pai, para a honra do Pai, sob nosso fardo, em um amor filial idêntico, a fim de poder portar nosso fardo como o Filho o portou e de portá-lo voluntariosamente. E eles o portam no interior e no exterior em seu amor filial. Não que com seus méritos eles nos liberem da morte eterna, mas com seus méritos, obtêm que sejamos receptivos aos méritos que nos adquiriu o Filho por seu santo martírio. Assim como Maria foi uma sustentação de nossa fé enquanto o Cristo sofria o martírio da cruz, assim também ela foi uma sustentação de toda carne com seus santos méritos, a fim de que o Pai não se vingasse do pecado do mundo nem da morte infligida pelos judeus a seu Filho único. E esses que, em seguida, se tornaram verdadeiros imitadores do Cristo, esses, o pai quer tê-los até o juízo final, pois tem necessidade. E se um só dentre eles faz falta uma só hora de um só dia, toda nossa carne pereceria por causa de nossos pecados carnais.
Nossas considerações…
E se a própria leitura impusesse a literalidade de suas palavras? Em línguas latinas, onde o Pai-Nosso se difundiu, “perdoar” = “per-doar” = “dar por”. A frase deixa de ser uma súplica por perdão (considerando que o Pai-Nosso não é uma oração de súplica), mas uma constatação que afirma o “dar-se-por”, ou seja: “dão-se dívidas por nós, assim como dão-se devedores por nós”. Somente reconhecendo os devedores que em nós se dão, ou surgem por assim dizer, é possível também reconhecer as dívidas que então em nós se dão. Afirma-se, por conseguinte, um “dar-se-por-nós” concomitante do dar-se de devedores e dívidas. Ao mesmo tempo, constata-se, por este reconhecimento, o sentido profundo do “dar-se-por” da condição humana, da abertura “ser-aí” enquanto ereignis:ser-no-mundo.
*AGOSTINHO — PERDOAR NOSSAS DÍVIDAS
*ARENDT — PERDOAR
*BUBER — OFENSA
*NICOLL — DÍVIDAS