«Pois és pó e retornarás em pó» (Gen 3,19). Única profecia que ninguém questiona seja ateu, agnóstico ou crente. Quem discutiria a decomposição a qual está destinada toda carne? Esquece-se que esta afirmação consta do livro do Gênesis, sendo proferida associada a um evento denominado “Queda” e que se passa no jardim do Éden. E ainda mais que não se refere ao homem decadente mas à natureza mesma do Homem original, imortal.
A afirmação de fato remeta ao versículo Gen 2,7 relatando a formação do Homem, traduzida assim pela LXX: « YHWH Deus formou o Homem pó fora da terra. Mas sete séculos mais tarde, a Vulgata latina de São Jerônimo, que é a referência da maioria das bíblias, “corrige”: «YHWH Deus formou o Homem do pó da terra». Esta correção introduz um enorme contrassenso logo que se troca “terra” e “pó” das duas traduções pelas palavras abstratas correspondentes, que dão melhor conta da verdadeira dimensão, que é existencial e não agrícola ou geológica. O LXX nos surpreende mas permanece conforme ao original afirmando: «YHWH Deus formou o Homem leveza fora do pesadume»; enquanto a Vulgata afunda no ridículo: «YHWH Deus formou o Homem da leveza do pesadume».
“Pó” (‘afar) no relato designa o estado que se opõe à “terra-pesadume” (adama), quer dizer o estado de “leveza”. Por outro lado a Vulgata distorce a “formação” do Homem a partir do pó (leveza), como matéria-prima do corpo do Homem modelado pelo Deus-artesão, enquanto a LXX, fiel ao texto hebraico, permite considerar a “leveza” (pó) como estado ou etapa da formação do Homem. Etapa seguida por outras.
No entanto o Homem é “formado pó” e não “formado do pó”, confirmado inclusive pelo dito «pois és pó» (hbr. ki ‘afar ‘ata). O Homem não é “formado de pó” e nem “retirado do pó”, como é traduzido imediatamente antes de «pois fostes retirado da adama». Onde também não se diz “tu és adama”, embora em hebreu a palavra homem (adam) torne o paralelo tentador.
No Jardim do Éden a palavra ‘afar que se traduz por pó não é sinônima nem equivalente da palavra “haadama” que nossas bíblias traduzem por “a terra” ou “o solo”. Ao contrário, é sua oposição que distingue neste relato a formação do Homem daquela dos animais: «YHWH Deus formou a partir da adama todos os animais selvagens e todos os pássaros do céu» (Gen 2,19) e «YHWH Deus formou o Homem pó a partir da adama (2,7). “Pó” só concerne o Homem e não toda a carne.
Os exegetas judeus ainda notam que no relato da formação do Homem o verbo “wayitser”, porta dois yod em lugar de um, como é regular e como é o caso para o “wayitser” que menciona a formação dos animais. Eles daí deduzem que o Homem foi formado (yatsar) com dois instintos (yetser), um para este mundo e outro para o mundo a vir, enquanto os animais que não serão chamados a juízo só têm um.
Os Targoums ditos do pseudo-Jonathan e dos “Neofiti” glosam: «Mas do pós te levantarás para dar razão e conta de tudo que tiveres feito». Note que subsiste ainda na época dos Targoums (século I) a noção que “pó” guarda uma promessa, expressa aqui sob a forma de ressurreição e juízo final para o Homem caído.
A noção positiva de “pó” (‘afar) no Jardim do Éden, verifica-se também na terceira menção desta palavra em 3,14, quando Deus amaldiçoa a serpente: «Comerás do pó todos os dias de tua vida» . Certamente nenhuma serpente se nutre de pó. Em Isaías se fala de uma serpente que o faz: «O lobo e o cordeiro pastarão juntos, o leão como o gado comerá da palha e a serpente terá do pó como nutrição, e não haverá mais nem erro nem morte sobre toda minha montanha santa disse YHWH (Is 65,25). Assim a serpente que “come do pó todos os dias de sua vida”é um anúncio messiânico, não uma maldição, assim como “retornarás em pó” é em realidade uma bendição que segue uma maldição também provisória.
Nos salmos uma passagem remete e esclarece este proposição: «Pois ele (Deus) sabe como devemos ser formados. Ele se lembra que somos pó» (Sl 103,14). Este salmo confirma sem dúvida que a qualidade de “’afar” provém de nossa formação antes da Queda e que portanto faz parte de nossa natureza senão incorruptível, pelo menos ainda não corrompida. Deus nos formou, somos seus filhos e ele conhece nossa natureza ao mesmo tempo frágil e imortal. Ele disto se lembra “continuamente” enquanto nós o esquecemos.
“Pó” que somos, imortal que somos; “pó”, enquanto símbolo de indestrutibilidade, de infinidade; de ubiquidade, caracteriza-se também pela leveza extrema, que permite que se cubra a cabeça (Jer 7,6; Ez 27,30; Lm 2,10) ou de jogá-lo sobre a cabeça (Jó 2,12) em um rito que originalmente visava conjurar a morte, não celebrá-la, envolvendo-se de pó ligado à imortalidade “natural” do primeiro Homem. Dizer que Deus «formou o Homem pó a partir do pesadume» é sugerir que na primeira etapa de sua formação dotou-o de uma estrutura corporal ultraleve, tornando-o capaz não apenas de uma liberdade maravilhosa de movimento mas de receber, até a completude, a inspiração que Deus vai lhe insuflar na segunda etapa.
Fica assim demonstrado que “pó” (‘afar) não se confunde com “terra” (adama), enquanto estado, e “terra” (adama) também não se confunde com “jardim” (gan) enquanto lugar. De suas oposições respectivas estes antinômicos e que se opõem, tomam todo seu sentido respectivo de leveza, pesadume, e lugar da liberdade. A adama, de onde Deus faz brotar as árvores (2,9) e de onde extrai os animais (2,19) e o Homem (2,7), é matéria terrestre pesada. O contrário de “pó”, substância fina e impalpável na qual ele a transforma em formando o Homem. “Feito pó”, o Homem escapa por sua natureza primeira, e antes mesmo de se tornar pelo sopro divino um ser vivo, ao pesadume dos “terra a terra”, daqueles que têm “os pés sobre a terra”. Ele é tão leve que não poderia se desenvolver (pois está no início de sua formação) sobre esta terra, onde veio ao mundo. Deus o transporta então ao jardim da liberdade que plantou em sua intenção (2,8 e 15), o jardim da liberdade do movimento e da escolha, o lugar da plenitude, onde o Homem ainda assexuado aí entrando se tornará verdadeiramente Homem, tornando-se homem e mulher.
É notável que o texto não fale jamais da “adama do jardim”. Não se diz também que um rio saísse do Éden para irrigar a adama do jardim, como é dito em 2,6, que um vapor se elevou… e irrigou toda a superfície da adama. É dito: «Um rio sai do Éden para irrigar o jardim». Não é dito em 2,9 que Deus fez brotar da adama do jardim as árvores de toda espécie, agradáveis a ver e boas para comer, e a Árvore de Vida, etc.; é dito: «Deus fez brotar a partir da adama árvores de toda espécie, agradáveis a ver e boas para comer, e árvore da Vida, no interior do jardim, etc.». Operação similar é feita com o Homem, só que este é formado pó a partir da adama e só em seguida posto no jardim. Para os animais assim como para as árvores, este transporte é sugerido: Deus as «formou a partir da adama» depois «as fez vir em direção ao homem» que se encontra no jardim. “Cultivar o jardim” (2,15) é um prazer, “cultivar a adama” (3,17 e 23) é uma imposição penosa. A adama simboliza o esforço e o pesadume. O jardim, além da liberdade, a leveza como o pó.
Se “pó” é o estado de leveza, o jardim dele é o lugar. Que seja um lugar, o texto o afirma com uma particular insistência. A abundância de detalhes de dimensão geográfica — a primeira vista tão inúteis quanto insólitos — espalhados sobre quatro versos (2,11-14): os nomes dos quatro rios e dos três países onde eles desaguam depois de serem separados de sua fonte comum — “curso d’água saía do Éden para banhar o jardim e daí se dividia em quatro braços” (2,10) — só tem por meta nos convencer. E talvez acessoriamente confundir as pistas, desencorajar toda tentativa de encontrar a localização exata não do jardim, certamente, mas do Éden onde estava plantado.
“Deus plantou um jardim no Éden” (2,8). O texto adiciona “do lado do oriente” (hbr. miqqedem). A Vulgata traduz por “desde o princípio” (a principio) este advérbio de lugar, lhe atribuindo anacronicamente o sentido que só veio a tomar depois do Éden, no exílio e na nostalgia do Éden, que se encontra nos profetas e nos salmos, onde designa efetivamente a época das origens.
O que se denomina a “Queda” logo é essencialmente uma caída no pesadume. Da leveza e da despreocupação inicial originais a seu contrário.