AMAR O PRÓXIMO, COMO A TI MESMO
Curiosamente o verbo “amar” tem em hebreu um campo semântico tão vasto quanto em francês. Em hebreu como em francês, pode-se amar tanto Deus como uma mulher ou uma coisa inanimada. É o contexto que dita se se trata de amor no sentido forte ou no sentido fraco. Somente, quando se traduz em inglês o célebre versículo: “Amarás teu próximo como a ti mesmo”, é sempre o verbo inglês “love” que é empregado, e não “like”. E também assim se entende em francês: no sentido forte. Em hebreu, pelo contrário, mostraremos, é o sentido fraco. O que tudo muda.
É verdade que em meio cristão cita-se frequentemente em paralelo a nosso versículo aquele do Deuteronômio que diz: “Amarás o Eterno teu Deus, de todo teu coração, de toda tua alma, e de toda tua força” (Dt 6,5; vide Amar a Deus). Mas isso começa pela “Shema Israel”, que tanto quer dizer “Obedece Israel!” como “Escuta Israel!”. Mais que um sentimento, é um apelo ao assentimento (na fisiologia bíblica o coração é considerado como a sede da inteligência). E sobretudo trata-se de Deus e não do Homem. O contexto do preceito: “Amarás teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19,18) é muito diferente. Aí é questão de conduta a seguir para com sua entourage (veremos mais adiante que é o que quer dizer a palavra hebraica traduzida aqui por “próximo”). São as prescrições de caráter prático, formuladas quase todas de modo negativo, e que só fazem desenvolver ou precisar as interdições da “segunda tábua” do Decálogo aí aditando todavia um aspecto social muito notável para a época. Em conclusão a este código de conduta como resumindo o espírito: “Não odiará teu irmão em teu coração (…) Não te vingarás e nem guardarás nenhum rancor contra os filhos de teu povo”. Enfim: “Amarás teu próximo como a ti mesmo”.
A interpretação maximalista deste versículo é de origem cristã. Entretanto seu sentido, partindo do fato que Jesus, se pronunciou o versículo, o entendia certamente no original em hebraico, só pode ser alcançado se o “como a ti mesmo” não se associa ao “amarás” mas ao “teu próximo”. Ou seja, deve-se entender o versículo em hebreu como: “Amarás teu próximo (que é) como ti mesmo”, quer dizer: “Amarás teu semelhante, aquele que é como ti, o filho de teu povo”. De pronto o “amarás” separado do “como a ti mesmo” que parecia qualificar o amor mais forte, aquele que cada um tem para consigo mesmo, pode e deve ser compreendido no sentido fraco, like e não love. A prescrição se torna perfeitamente realizável, não implicando um sentimento ardente, mas uma condição benevolente, ela é o equivalente das duas prescrições paralelas que a precedem no texto do Levítico: “Não odiarás teu irmão”, “Não guardarás rancor contra os filhos de teu povo”, as três resumindo o espírito do código social do qual constituem a conclusão.
A princípio também o “ti mesmo” da tradução habitual é abusivo. Literalmente em hebraico há “como ti”, ou seja: “Amarás teu próximo (que é) como ti”. Este próximo é restritivo e é característico que a Vulgata de Jerônimo o traduza por “amicus” em conformidade com as indicações do contexto que fala de “irmão” e de “filho de teu povo”.
O “próximo” que é prescrito de se amar (no sentido fraco), quer dizer para quem se deve exercer a benevolência e a entreajuda, designa portanto todo membro da entourage imediata, da família, da tribo e, por extensão, do povo, definido ele mesmo por uma comunidade de práticas e de crenças tanto quanto de interesses. Depois do Exílio, este parentesco se torna mais nitidamente “religioso” e todo transgressor da Torá dela é excluído. Rachbam, o neto do célebre Rachi, comenta assim: “É teu próximo se é bom, mas se é mau, como diz a Escritura, o temor de Deus é o ódio do mal”.
O importante é logo dissociar o “como ti” do “amarás” e de conduzir a significação de “amar” nesta prescrição a uma prática de entreajuda e de benevolência, que cessará de ser sublime e utópica para se tornar realizável — o que não quer dizer sempre fácil.
As palavras originais e revolucionárias de Jesus que não se encontram equivalente na Bíblia hebraica, culminam no que o Evangelho de João — único a registrá-las — denomina “uma mandamento novo” (Jo 13,34): “Vos dou um mandamento novo: Amai-vos uns aos outros, como vos amei”. E em outra passagem de João: “Tal é meu mandamento: Amai-vos uns aos outros como vos amei. Ninguém tem mais amor que este: de dar alguém sua vida pelos seus amigos” (Jo 15,12-14).
Aqui verdadeiramente é questão de “amar a seu próximo com se ama a si mesmo”: dando sua vida pelos seus amigos. Mas trata-se de uma mandamento novo e não de uma paráfrase ou de uma interpretação do adágio bíblico que Jesus cita, segundo o Levítico.
Lembremos que só João relata este mandamento novo, mas os Evangelhos de Mateus e de Lucas (Marcos não faz menção) creditam a Jesus um ensinamento sobre “o amor dos inimigos” opondo-o ao ensinamento bíblico tradicional na célebre sequência das Beatitudes. Realmente, nestes casos, Jesus estaria propondo algo novo elevando o patamar a ser superado, pelo menos a uma altura que só com sua ajuda este amor seria possível.