Árvore da Onisciência [PNHI]

A ÁRVORE DA ONISCIÊNCIA

“O Bem e o Mal“, eis noções completamente ausentes da Bíblia das Origens, e que todas as traduções aí colocam. As palavras “Bem” e “Mal” em francês designam valores — não somente morais mas ideais. O Bem é a Ideia de Platão que se confunde em seu princípio com o Belo e o Verdadeiro. Esta Ideia, para Platão, é uma realidade eternam anterior a toda manifestação concreta, e superior mesmo aos deuses. Nada de tal existe, de perto ou de longe, no pensamento bíblico.

E no entanto não se fala correntemente, em se referindo ao Jardim do Éden, de “Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal”? Em todas nossas bíblias francesas, à exceção reticente da Tradução Ecumênica, este termo consagrado continua a figurar, como se fosse impossível substituí-lo — enquanto ele é absolutamente inexato.

O que se traduz pelo “Bem” é o adjetivo “tov” que no texto não tem artigo definido, e logo não é nem mesmo equivalente de “o bom” ou de “isto que é bom”. Pois “tov” quer dizer “bom” e não “bem”, como “ra’” quer dizer “maligno” e não “mal”. “Bom” e “maligno” não exprimem como “bem” e “mal” juízos de valor, juízos morais. São apreciações subjetivas de prazer ou de desprazer, de conforto ou de desconforto, de alegria ou de sofrimento, que refletem sensações imediatas ou lições da experiência. Vermos adiante que mesmo nos textos “legais” ou sapienciais, onde é questão de escolha entre o “tov” e o “ra’” e notadamente na famosa injunção do Deuteronômio 30,15, este “tov” e este “ra’” permanecem coisas muito concretas posto que comparadas à “vida” e à “morte”.

Mas em todo caso no relato do Jardim do Éden “tov” e “ra’”, associados na expressão “tov wara’” não querem dizer de modo algum “o Bem e o Mal”, nem “a felicidade e a infelicidade”, como traduz a Tradução Ecumênica, nem mesmo “o bom e o maligno”, nem mesmo “bom e mau”. Trata-se de uma locução que se encontra em outros textos bíblicos e que significa “tudo” (ou precedida de uma negação, “nada”). Gn 24,50

Seguem-se inúmeras citações da Bíblia que comprovam a tradução desta expressão pela noção de “totalidade”. Insistimos e citamos numerosos exemplos, porque trata-se uma questão de fundo e não de uma disputa pedante sobre o vocabulário. Se “tov” e “ra’” conjuntos significam, como pensamos ter provado, a totalidade e constituem gramaticalmente uma espécie de locução adverbial (que se pode traduzir “na totalidade”, “em tudo”, “em todo gênero” ou “todos os azimutes”) então a árvore mítica da qual nossos primeiros pais comeram o fruto e que precipitou sua “Queda” e sua expulsão do Éden — nossa eterna nostalgia —, esta árvore famosa, que continua a desempenhar tamanho papel em nossa cultura e nosso inconsciente, não é aquela do Conhecimento do Bem e do Mal mas aquela do Conhecimento em Tudo, ou da Totalidade — como proponho denominá-la a “Árvore da Onisciência”.

Só do ponto de vista sintático, esta tradução que proponho é preferível àquela que supõe ao Bem e ao Mal um artigo definido que falta no texto, e negligencia o fato que a palavra precedente leva um, contrariamente à regra do “estado construído”. Em hebreu com efeito no estado construído que liga os dois nome, cujo segundo é o complemento do primeiro, é sempre o segundo que leva o artigo definido e jamais o primeiro. Aqui a ordem é inversa. Certamente o hebreu bíblico não respeita sempre a regra do estado construído mas na ocorrência da incorreção é repetida três vezes com insistência que deveria alertar há muito tempo os hebraizantes sobre o bem-fundado desta tradução suspeita. Literalmente, eles sabem, deveria se traduzir: “A árvore do Conhecimento bom e mau” onde “bom” e “mau” não podem ser nem adjetivos qualificativos (não tendo em uma frase determinada artigo definido) nem complementos de nome do “conhecimento” ou da “árvore”. Só podem ser oposições, o que corresponde à função de locução adverbial que lhes atribuo, na Árvore do Conhecimento “em bom e em mau” quer dizer “em tudo”, ou ainda melhor, a “Árvore da Onisciência”.

Desta “onisciência” há três menções no relato do Jardim do Éden. A primeira em Gn 2,9 onde é dito que Deus fez crescer fora do pesadume no jardim, entre outras, a Árvore da Onisciência. A segunda em Gn 2,17, onde é dito que Deus prescreve ao Homem: “Tu não comerás da Árvore da Onisciência, pois neste caso morrerás certamente”. Não guardo nesta enumeração dos substantivos “onisciência” o verbo do qual se serve a serpente em Gn 2,5 para enganar a Mulher — palavra armadilha na qual caíram não somente Eva e em seguida Adão, mas a maior parte dos teólogos até hoje em dia — mas aí incluo o substantivo (e não o verbo que aí se vê frequentemente) que termina a célebre reflexão emprestada a Deus em Gn 3,22 sobre a pretendida prerrogativa divina da onisciência!

Ora convém ser categórico. Na Bíblia, é só a serpente que afirma — lógica e mentirosamente — que Deus é dotado de onisciência. A Bíblia jamais diz que Deus conhece o Bem e o Mal — nem o Bem ou o Mal sós, nem que Deus conhece ou sabe tudo. Deus não conhece qualquer abstração (e o Bem e o Mal, como a totalidade, são abstrações, entidades, que o homem absolutiza) pois as abstração não existem na realidade. Deus conhece o coração do homem, o coração de cada homem, Deus conhece o passado, Deus conhece o futuro — e ainda estes conhecimentos não prevalecem contra seu todo-poder de mudar os corações e as vidas, e de fazer mesmo que o passado cesse de ter sido, ou que o futuro seja diferente do que ele previu — se ele o quer.

Deus conhece o coração de cada homem. Mas não esqueçamos que, na fisiologia bíblica, o coração não é a sede do sentimento (situado todavia nas entranhas, ver Sl 40,9; 30,27). É a sede da vontade e em primeiro lugar da inteligência (Dt 29,3; Is 32,4; Jr 24,7; Ec 1,17; 8,16; etc.).

No primeiro relato da Criação (Gn 1,1 a 2,3), Deus pontuou as etapas da obra de sua Palavra de sete suspiros de satisfação, repetindo sete vezes: “E Deus viu que isto era bom” (da qual uma vez, depois da criação do Homem, “que isto era muito bom”). Nada há de maligno na Criação e a palavra “ra’” não aparece no primeiro relato. Assim como não aparece uma só negação (conta-se aí seis “ken” — sim — e nenhum “lo’” — não — nem nenhum “‘ayin”).

No segundo relato a palavra “ra’” não aparece também isolada. Ao contrário “tov” aí aparece quatro vezes isolado no sentido de “bom”. Logo quando se trata de árvores do jardim “boas a comer” e em geral (2,9) e em particular (3,6). “Bom” tem aqui um sentido bastante concreto, que é reforçado pela adjunção no primeiro caso do adjetivo “nehmad”, desejável, encantador, e no segundo caso não somente desta adjetivo mas de um substantivo exprimindo o desejo mais sensual, “tov” é ainda empregado para qualificar o ouro do país de Havila (2,12) e negativamente quando Deus diz: “Não é bom que o Homem viva só” (2,18).

Quanto a “ra’” não aparece no segundo relato da Criação senão associado à “tov” e sempre na segunda posição atrás de “tov” como sua sombra.

É o que ele é. Ele não tem conteúdo por ele mesmo. Ele não quer dizer “maligno” neste estado, Deus não tendo nada criado de maligno. Esta palavra vazia figura simplesmente o “duplo” que representa toda linguagem em relação à realidade. Linguagem da qual Deus dotou o Homem em criando-o “consciente de existir” (v. neshamah) e que é “bom” para melhor viver esta realidade com o risco — pois ele é livre — que dela se serve para negar ou conferir imaginariamente a sua sombra.

Esta ilusão de um real mais profundo que conheceria pela linguagem, Deus quer preservar o Homem proibindo-o, não de desfrutar-se da vista da Árvore da Onisciência, nem de se estender a sua sombra — ao abrigo da qual os olhos da criatura podem contemplar sem morrer seu Criador — mas somente, como o precisa o relato, dela “comer” enquanto não é comestível, que porta frutos benéficos sem dúvida em pequena dose mas que envenenam se deles se alimenta. É o caso das ideias abstratas. Princípios, falsas totalidades, cômodas para a conversação, mas que não têm outra existência que não seja fictícia e, se as toma à sério, nociva.

Não se trata portanto aqui de “bom” e de “mau” no sentido moral como se repete sempre, mas de “mau” como outra face de “bom” e formando com ele a aparência de uma plenitude, antes de formar sem ele uma entidade fantasmática.

A palavra “ra’” isolada não aparece senão no sexto capítulo do Gênesis, no momento que Deus “se arrepende” de ter criado o Homem, decide o Dilúvio mas salva Noé (6,5). Depois em seguida no capítulo oito, no final do Dilúvio (8,21).

Até aí então, nada de “mau” se passou para a Bíblia. Nem a desobediência de Adão e de Eva, nem sua expulsão do Éden, nem o assassinato de seu irmão por Caim ainda não são qualificados de “maus”. Só depois das experiência das primeiras gerações humanas, que viviam perto de 120 anos, que Deus viu que “a maldade (ra’at) do homem era grande sobre a terra” e que “todo o instinto dos pensamentos de seu coração era unicamente mau (ra’) cada dia” e que decide exterminar toda a vida pelo Dilúvio. Parece que se pode verdadeiramente falar aí de pecado, senão “original” pelo menos herdado.

E ainda mais depois do Dilúvio, quando Deus constata que “o instinto do coração do homem é mau (ra’) desde sua juventude. Isso parece uma condenação sem apelo. E de fato não, como depois de sua decisão de enviar o Dilúvio, Deus pelo menos salva Noé, mesmo depois de ter pronunciado esta sentença, Deus dela tira como conclusão: “Não amaldiçoarei mais a terra-pesadume por causa do homem… não golpearei mais tudo o que é vivo como o fiz”.

Me parece extremamente significativo que a palavra “ra’” não apareça então na Bíblia das Origens senão associada a “tov” e religada a ele por uma conjunção de coordenação que faz uma totalidade teórica. O “todo” representa a tentação intelectual de não se contentar do “tov” que é dado no éden mas de buscar outra coisa atrás, que dele seria o complemento não somente lógico, mas somente a ideia da coisa.

Só é quando o Homem se adona desta possibilidade teórica, que será forjada sua ideia própria do tov que não é outra — esta ideia — que o ra’, que o ra’ tomará corpo e se separará do tov para devir seu contrário, não mais dialético mas real, e que Deus constatará depois de muitas gerações a emergência definitiva e aparentemente irreversível de um ra’ autônomo no coração (quer dizer na inteligência e na vontade) do Homem. O pecado “herdado” é portanto o resultado do hábito mental tomado pelo homem de se fazer uma ideia do bom (do que é bom para ele) em lugar de simplesmente o acolher.

Desde sua “juventude” — e não de sua infância, ou desde seu nascimento. É porque vale mais evitar o termo “pecado original”, que se situa este pecado seja no início da história do Homem, seja no início da história de cada homem. Juventude (ne’ourim) designa em hebreu como em francês uma categoria de idade que exclui a infância, e ultrapassa a adolescência. Os “filhos da juventude” (bne-hane’ourim) (Sl 127,4) é uma expressão para distinguir aqueles que tivemos jovens daqueles que tivemos velhos (bne-haziquounim). O que caracteriza esta juventude (ne’ourim) na Bíblia é um mínimo de consciência. Pode-se aí fazer votos, e exercer responsabilidades, atividades econômicas, se casar, ter filhos, fazer a guerra, se prostituir, etc. Já se sofreu a influência de toda uma educação, de toda uma tradição cultural e intelectual. Herdou-se dos hábitos mentais de sua entourage. Não se é mais uma cera virgem, se aprendeu a pensar, a raciocinar de uma certa maneira… Se o instinto do “coração” do homem é dito “mau desde sua juventude”, é que só é a partir deste período de formação que se desenvolve assim. Não é inato, no sentido biológico. Não é um pecado já presente no embrião, e do qual se necessitaria se lavar pelo Batismo. O dogma católico da imaculada concepção é absurdo à luz da Bíblia, para qual não há “maculada concepção” para ninguém. A criança é inocente do pecado original verdadeiro, que não é uma disposição da natureza humana pervertida, mas uma repetição de geração, pela via do ensinamento, e em particular do ensinamento da linguagem, de uma mesma estrutura mental guardando o homem na lógica das abstrações que inventa e que transmite, e que ele substitui mais e mais à realidade.