Um evadido salva a honra do Homem de entre os resignados. Na genealogia sethista (Seth), Enoque não é o filho de Caim mas o bis-bis-neto de Seth. Ele tem quatro gerações antes dele. Sua notícia biográfica começa como aquela de seus ancestrais. Mas no anúncio de seu filho mais velho, se adiciona uma informação que não concerne mais exclusivamente seu estado civil. É dito que depois do nascimento de seu filho Matusalém, que teve aos sessenta e cinco anos, Enoque, “andou com os deuses” trezentos anos. O que não o impediu, durante este período de ter “filhos e filhas” como os outros. Mas em seguida, em lugar da conclusão necrológica habitual, é repetido que Enoque “andava com os deuses” depois não que “ele morreu” mas que ele é ausente pois Deus o tomou”.
O nome de Enoque significa “educado”. Educado por quem? Não pela morte de seus ancestrais que, vista sua longevidade fantástica, viviam todos ainda. Mas — o texto, tão avaro de detalhes, se dá ao trabalho de nos dizer — pelo nascimento de seu filho ((Matusalém), posto que é em seguida, e durante trezentos anos que se dedica a uma longa reflexão religiosa, desencadeada sem dúvida por este evento. Ele devia ter visto os cadáveres, senão aqueles de seus ancestrais, pelo menos daqueles de alguns dos “filhos e filhas” destes, ou de inimigos “hominianos” mortos. E talvez se perguntou subitamente, diante deste novo futuro cadáver saído dele, se tinha razão em engendrá-lo? E porque senão para a morte? Em resumo ele pôs em questão o sentido da existência. Agitou em sua cabeça a ideia da Divindade, ele “andava com ela” sem cessar. Até o momento em que seu aprisionamento na condição humana se interrompeu. Prematuramente (se se compara seus 365 anos aos 900 anos de média dos outros sethistas). E misteriosamente (se se compara seu “desaparecimento” inexplicado ao “ele morreu” que todo o mundo compreende de seus ancestrais e seus descendentes).
Que se passou, como se diz, na realidade? Mas em qual “realidade”? Naquela que se “computa” em nossa cabeça e que nosso espírito lógico amputado pela “Queda” imputa “cientificamente” a todo universo de sua imaginação, construído sobre os fragmentos da Criação divina? Ou na Realidade da Criação divina e do Éden, que provisoriamente nos escapa, mas da qual pressentimos, como Enoque, a presença secreta atrás da nossa, e que nos leva a interrogar como ele, de examinar em “andando com os deuses”, quer dizer em fazendo trabalhar “religiosamente” nossa imaginação “científica” (nascida do rompimento da Árvore do Conhecimento), e em suas categorias? A lenda judia, que na era inter-testamentária fez de Enoque o herói de um apocalipse, representou seu desaparecimento como umas ascensão, à maneira daquele de Elias, sobre um carro de fogo. É lógico, posto que a religião põe Deus “no céu”. Mas a Bíblia das Origens que o faz “passear no jardim” depois “se ausentar” vis-à-vis do Homem decaído depois de algumas tentativas infrutuosas de falar a seu coração e de dialogar com ele. Enoque “desaparece” da “realidade” da condição humana, e retorna à Realidade de sua origem, não porque teria vivido piedosamente “andando com a divindade em sua imaginação” como se pretende às vezes atribuindo sua imortalidade reencontrada a seus méritos, mas porque, precisa o texto, “Deus o tomou”. Não os deuses.
Seja, se dirá, Deus o tomou. Mas como? A questão me parece todavia de compreender que, segundo o texto, Deus o tomou. Pois em hebreu o pronome pessoal não se relaciona forçosamente à última pessoa que se vem de citar, sobretudo se o contexto sugere que trata-se de uma outra pessoa. Aqui o verbo “tomar” empregado com Deus por sujeito constitui uma alusão muito clara. Quem Deus tomou, de maneira paradigmática, na Bíblia das Origens até aqui, senão o Homem “fora da adama em o Criado, como ele se lembra ele mesmo ao interessado quando de seu banimento do jardim? E mesmo se Adão e Eva e sua progenitura continuam a preferir a escravidão do Exílio que escolheram à liberdade do Éden que lhes fez medo, não puderam sufocar todavia neles estas últimas palavras que Deus lhes dirigiu, e que murmuraram sem dúvida de tempos em tempos a seus descendentes como uma vaga esperança longínqua para encorajá-los a ter em seus momentos difíceis. Não é, portanto, Enoque enquanto indivíduo piedoso que designa o pronome pessoal na frase “Deus o tomou” mas o Homem, o Homem do Éden, ao qual Enoque se refere. Não imediatamente depois do nascimento de seu filho, mas depois de um longo período “religioso” de tateamentos, pode-se pensar que quis subitamente “atualizar” diferentemente dos outros sethistas, sua natureza imortal potencial e que assim conseguiu a julgar pelo enigmático “ele ausente” que substitui o “ele morreu” de seus biógrafos. O texto em todo caso não diz mais. Salvo se se decide lê-lo — o que pode ser arriscado — como um testemunho da fé de Enoque. Fé extraordinária, capaz de romper as grades de nossa prisão racional e de nos transporta ou melhor de nos retransportar à Realidade de nossa origem, nada que em crendo com suficiente perseverança e força que Deus tomou o Homem — do qual participamos — uma vez por todas “fora da adama”…