Charles Mopsik: LE LIVRE HÉBREU D’HÉNOCH, OU LIVRE DES PALAIS
O HOMEM ENOQUE NO GÊNESIS E SUAS INTERPRETAÇÕES
Dois versos apenas do Gênesis suscitam desde muito tempo uma legítima emoção junto aos teólogos preocupados com a coerência da história santa. O capítulo 3 do livro do Gênesis expõe o processo que levou o homem para fora do Paraíso e introduziu a morte. Desde então, os profetas anunciaram e prometeram uma redenção para o final dos tempos e o retorno escatológico ao estado de Adão antes do pecado. Para os cristãos esta redenção já foi aportada pelo Cristo, a partir do qual é possível ao homem recuperar sua condição primeira. Os judeus aguardam ainda a realização das promessas proféticas. Ora antes mesmo do episódio do Dilúvio, o Gênesis nos apresenta um homem para quem a esperança da imortalidade e o retorno à condição adâmica inicial já tinha sido efetivamente realizada. No entanto, os termos do relato bíblico são bastante imprecisos para deixar lugar à leituras mais contraditórias. Citemos a princípio o texto em questão:
“Quando Enoque tinha vivido sessenta cinco anos, engendrou Matusalém. Depois que engendrou Matusalém, Enoque andou com Deus trezentos anos, e engendrou filhos e filhas. Os dias de Enoque foram ao todo trezentos e sessenta e cinco anos. Enoque andou com Deus, pois ele não mais estava aí, pois Deus o tinha tomado” (Gn 5, 21-24).
Duas séries de tradições exegéticas contraditórias querem dar conta desta notícia breve e enigmática. As fontes mais antigas mantém Enoque por um justo que mereceu um destino fora do comum. As fontes rabínicas, mais tardias, se dividem em duas correntes. Aquelas que admitem — até enriquecem — as pinturas dos textos antigos favoráveis a Enoque e aqueles que o consideram como um ímpio, morto como todos os outros homens. Refiramo-nos primeiro a estas últimas. A mais importante encontra-se no Midrach Rabba sobre o Gênesis (25,1):
R. Hama, em nome de R. Ochaya, disse: (Enoque) não foi inscrito entre os registros dos justos, mas entre os registros dos maus. R. Ayevou disse: Enoque era safado, às vezes justo, às vezes mau.
Seguem-se citações que confirmam a visão de um Enoque, comum dos mortais. A possível razão aventada para esta visão seria o caráter muito “crístico” deste personagem, sendo considerados os heterodoxos que defendem este caráter, como judeus-cristãos. Basta mencionar uma passagem da Epístola aos Hebreus: É pela fé que Enoque foi transferido para não ver a morte, não se achava mais, porque Deus o transferiu” (11,5). No entanto seria mais sensato pensar nesta apresentação de um Enoque “ordinário” como simples reação contra as correntes místicas, interiores ao judaísmo, que viam em Enoque o protótipo do extático. Com efeito, na visão mística que sustenta Enoque, relatam-se ascensões e descidas que corrompem à separação dos domínios celestes e terrestres, assim como a imortalização de Enoque perturba a ordem humana normal instaurada desde a partida do Jardim do Éden. Esta desordem ameaça a ordem religiosa e social tal qual se cristalizou e que se queria fixar. Um personagem antediluviano se torna subitamente de uma atualidade ardente posto que revela uma possibilidade inusitada: alcançar desde agora, sem esperar o final dos tempos, uma proximidade total com a glória divina. Se se pode imaginar que este gênero de motivo tenha qualquer pertinência para justificar o denegrimento de Enoque pelos rabinos do Talmude face a sua elevação ao nível mais alto nos meios influenciados pelas concepções apocalípticas, não temos os meios de identificar os “minim” do Midrach com um grupo sectário conhecido. Por outro lado, a tradição rabínica ela mesma nos transmitiu visões do personagem Enoque que rompem totalmente com aquela do Gênesis Rabba 25,1. As tradições judaicas “favoráveis” a Enoque, incorporadas na literatura rabínica, são bem mais numerosas que se diz, mesmo se é verdade que se trata de coletâneas consideradas tardias. Passado o tempo, parece que a rejeição das antigas tradições vendo Enoque o herói de uma perfeição adâmica reencontrada perdeu sua influência.
Se Enoque representa o homem perfeito e imortal, e isso de certa maneira desde o texto do Gênesis 5,24, sua angelomorfose que sucedeu a sua elevação celeste descrita em III Enoque (c. 4-15) se explica facilmente: Deus tinha inicialmente dado a Adão o estatuto de um arcanjo no Jardim do Éden — todas as fontes judaicas, pseudepígrafes mais rabínicas estão de acordo neste ponto — e como Enoque restaurou esta condição adâmica primordial, ele foi entronado naturalmente entre os coortes angélicos. Sua identificação com o chefes dos seres celestes traduz o processo de transformação regrada sobre a lógica da interpretação.
Nos permitimos a este respeito propor uma hipótese suplementar quanto a etimologia do nome Metatron, o Enoque transfigurado. Já existe toda uma série, cada uma foi duramente discutida e criticada. Uma das mais célebres consiste a dar ao nome Metatron o sentido de “assistente do trono” (meta-tronos). Com a maior prudência, nos arriscamos a tentar este perigoso exercício. Pode-se considerar que este nome é formado de uma raiz principal, “mtt” e de um sufixo padrão, “ron” que entra na composição de muitos nomes de anjos nos escritos judeus angelológicos: Adiriron, Sanegoron, etc.. Neste caso, a parte do nome Metatron que poderia ter um sentido preciso reconhecível seria a primeira, composta das três consoantes “mtt” (as letras hebraicas mem, tet, tet) A origem grega (ou latina) deste nome não escapa a ninguém. Ora na versão da Septuaginta do Gênesis 5,24 (“pois (Enoque) tinha sido tomado”), como na versão grega de Siracida 44,16, o verbo hebreu “laqah” (tomar) é apresentado pelas formas “meteteken”, “metatitema”, do verbo “metetete”, que significa “transportar, transferir”; é possível imaginar que as três consoantes formam a parte significativa do nome Metatron, “mtt”, transponham o grego “metetete” sob uma forma ou outra. Este nome significaria então “aquele que foi transferido” e estaria em relação direta com Enoque e seu arrebatamento. Esta solução, lançamos aos críticos, sem segurança nem garantia.
Outra etimologia interessante foi proposta por G. Stroumsa em seu artigo citado acima, que considera a raiz de Metaron é o grego “metron”, a medida, ou o latim “metator”, o mensurador. Metatron disponibiliza com efeito as medias do Tamanho do corpo divino (o chour qoma) em vários escritos da literatura dos Palácios e poderia mesmo ter sido identificado a este corpo de dimensões extraordinárias. Se tal é o caso, pode-se ver em uma passagem do profeta Zacarias a fonte bíblica possível destas especulações. No capítulo 2, versículo 6, Zacarias percebe em visão um anjo tendo em sua mão uma corda de medir e preparando para avaliar o comprimento e a largura da Jerusalém futura. Este anjo pode ser identificado ao “anjo do Senhor” do capítulo 1, vv. 11-12, assim como ao anjo intérprete que conversa com o visionário (v. 9ss). Além do mais, este anjo agrimensor é denominado no v. 8 do capítulo 2, “jovem homem” ou “adolescente” (“na’ar”), e este nome será uma denominação muito frequente de Metatron nos escritos da Mercaba. Uma leitura destes versículos — embora de interpretação difícil — pode fornecer imagens e termos que foram associados ao anjo Metatron e estar na base deste nome, que se poderia então ser vertido em português por Agrimensor.