Enquanto dura o seu fascínio, o único espaço-entre que pode inserir-se entre duas pessoas que se amam é o filho, o produto do amor. O filho, esse espaço-entre com o qual agora os amantes passam a relacionar-se e que possuem em comum, representa o mundo, na medida em que também os separa; é uma indicação de que inserirão um novo mundo no mundo existente. [Essa faculdade criadora-de-mundo [world-creating] do amor não é o mesmo que a fertilidade, na qual se baseia a maioria dos mitos da criação. A seguinte fábula mitológica vai, ao contrário, buscar suas imagens claramente na experiência do amor: o céu é visto como imensa deusa que ainda se debruça sobre o deus terra, do qual está sendo separada pelo deus ar, que nasceu entre eles e que agora começa a erguê-la. Assim, passa a haver um espaço mundano composto de ar, que se insinua entre a terra e o céu. Conferir H. A. Frankfort, The intellectual adventure of ancient man (Chicago, 1946), p. 18, e Mircea Eliade, Traité d’histoire des religions (Paris, 1953), p. 212.] É como se, por meio do filho, os amantes retornassem ao mundo do qual o amor os expulsou. Mas essa nova mundanidade, o resultado possível e o único final possivelmente feliz de um caso de amor, é, de certa forma, o fim do amor, que terá de dominar novamente os parceiros ou ser transformado em outra modalidade de pertencimento. [ArendtCH:C33]
Michel Henry EU SOU A VERDADE (MHSV)
Residindo em sua condição de Filhos, o “ser em comum” dos Filhos é flutuante como ela. Em que a condição de filho é flutuante? Não é ela, ao contrário, uma essência que escapa à variação e que deve imperativamente estar presente e ser preservada em sua estrutura inalterada, sem o que não haveria Filho precisamente, nenhum homem no sentido do cristianismo? Mas, segundo o cristianismo, o conceito de Filho se desdobra em função de que, esquecido de sua condição precisamente, decaído de seu esplendor original, de-ge(ne)rado, lançando-se no mundo e fascinado por ele, o filho perdido não se preocupa com mais nada além deste mundo e com tudo o que se mostra nele. Nesta queda, sua relação consigo é modificada de alto a baixo: já não se tem sua relação consigo na Vida, a experiência que ele fazia, experimentando-se a si mesmo, da experiência de si da Vida absoluta nele. Esta experiência de si de que ele tem constantemente sua condição de vivente, ele a atribui a si mesmo. Assim, ele se encerra em si mesmo. A experiência que ele faz da Vida nele tornou-se a experiência de sua própria vida, da vida dele pura e simplesmente. De Filho tornou-se um ego, este ego que se toma pelo fundamento dele mesmo e de tudo o que ele faz. Entrou no sistema do egoísmo transcendental, sistema em que ele só se preocupa consigo; de tal modo, que sua relação consigo já não é sua relação consigo na Vida – em Cristo e em Deus –, mas sua relação consigo na preocupação consigo: através do espaço de um mundo. O que se encontra oculto nessa relação consigo do Si em preocupação consigo no mundo não é nada menos que seu Si verdadeiro, que só é dado a ele na autodoação da Vida absoluta, fora do mundo, longe de [356] toda Preocupação. O que se encontra oculto, ao mesmo tempo, é esta Vida absoluta, é o próprio Deus.
O caráter singular da genealogia humana do Cristo não transparece menos em sua retomada por Lucas, e isto em duas passagens, a primeira vez sob a forma de uma retificação anódina: “…Ele era, pelo que se crê, filho de José…”; uma segunda vez na incrível enumeração que, depois de ter designado Cainan como o filho de Enos, Enos como o filho de Seth, Seth como o filho de Adão, declara subitamente este último o filho de Deus, como se se pudesse pôr na mesma linha estas duas filiações, como se fosse a mesma coisa com efeito ser o filho de um homem ou aquele de um deus, — como se, mais precisamente este último não interviesse senão especulativamente de certa maneira quando, nenhum outro homem não se apresentando para ser o pai do primeiro, este papel não podia mais ser confiado senão a um Deus suposto.
Mas se Adão não pode ser dito filho de Deus da mesma maneira que Seth é dito seu próprio filho — o filho de Adão —, então é preciso de perguntar com todo rigor em que consiste a diferença entre estas duas condições: ser filho de um homem como Seth o é de Adão, ou bem aquele de Deus, como é o caso de Adão. Formularemos a resposta nestes termos: a diferença essencial entre a condição de ser filho de um homem e aquele que consiste a ser filho de Deus reside na Verdade. Entendamos: no gênero de Verdade do se trata cada vez. Na verdade do mundo todo homem é o filho de um homem, e logo também de uma mulher. Na Verdade da Vida todo homem é o filho da Vida, quer dizer de Deus ele mesmo. Destas duas verdades para dizer o nascimento, quer dizer a possibilidade para um vivente de vir na vida, uma sem dúvida é de mais. Pois Seth não pode ser o filho de Adão se Adão não pode ser senão o Filho de Deus. Inversamente Adão não necessita ser o Filho de Deus se Seth pode ser seu próprio filho. É preciso escolher e dizer sem equívoco de quem o homem pode ser filho, de um outro homem ou somente de Deus.
Disto que é o nascimento do homem e assim sua condição de filho “na verdade do mundo”, cada um hoje em dia o sabe, ajudado nisto pelos progressos fulgurantes da biologia e pela difusão das teoria que se crer serem suas. Também não faremos mais que breves alusões, na medida que a fenomenologia do nascimento já demonstrou o absurdo de toda interpretação mundana do nascimento, a saber a interpretação desta como vinda ao mundo ou ainda como resultante de um processo pertencente a este mundo, de um processo objetivo por exemplo. Absurdo se sustentando nisto, como vimos, que, no mundo e na exterioridade de seu “fora”, nenhum “viver” não é possível — nenhum vivente também consequentemente.
No que toca à condição de Filho e assim do nascimento “na Verdade da Vida”, demandamos ao Cristo ele mesmo. Por um lado, com efeito, segundo uma palavra essencial já citada, o Cristo se dá como “a Verdade e a Vida”. Ele é ele mesmo esta Verdade original que é a Vida. Por outro lado, é à luz desta Verdade que ele analisa sua própria condição de Filho. Só se pode examinar a condição de Filho à luz de uma outra Verdade que é aquela da Vida? Pode-se dela falar de outro modo que não faz o Cristo ele mesmo se não há Filho e nascimento senão na Vida, se vir à vida não é concebível senão a partir dela?
O discurso que o Cristo mantém sobre ele mesmo, nós o consideramos desde o início destas análises como o conteúdo essencial do cristianismo. Parece que este discurso não vale somente para o Cristo mas concerne também todos os homens na medida que são, eles também, Filhos. De fato Filhos só há na Vida, engendrados por ela. Todos os Filhos são Filhos da Vida e, na medida que só há uma única Vida e que esta Vida é Deus, eles são todos os Filhos de Deus. Se o Cristo não é somente o Arqui-Filho transcendental imerso na sua simbiose eterna com o Pai, se do ponto de vista dos homens ele se apresenta como uma figura emblemática e radiante que os faz tremer no fundo deles mesmo, é porque esta figura é aquele de sua condição verdadeira, a saber sua própria condição de Filho. Assim o discurso que o Cristo mantém sobre ele mesmo e que consiste em uma elucidação radical da condição de Filho, ultrapassa subitamente seu domínio inicial e próprio — o gozo autárcico da divindade, o sistema auto-suficiente da Vida e do Primeiro Vivente — para transbordar sobre a condição humana inteiramente e pôr esta sob uma luz que nenhum pensamento, nenhuma filosofia, nenhuma cultura nem nenhuma ciência não tinha ainda ousado projetar sobre ela.