EVÁGRIO — CAPÍTULOS SOBRE O DISCERNIMENTO DAS PAIXÕES E DOS PENSAMENTOS
1. Dos demônios opostos à prática, os primeiros a nos fazer a guerra são aqueles que são predispostos aos prazeres ou apetites da gula, aqueles que nos inspiram o amor do dinheiro e aqueles que nos provocam à glória humana. Todos os outros, andam atrás daqueles, acolhem em seguida aqueles que foram feridos por eles.
Não é possível, com efeito, cair nas mãos do espírito de luxúria se não se sucumbiu à gula, e não se pode pôr em cólera se não se luta para satisfazer as concupiscências irrazoáveis dos alimentos, das riquezas ou da glória. Não é possível não mais escapar ao demônio da tristeza se se está privado de todas estas coisas ou quando não se pode obtê-las. Da mesma maneira, não se evitará o orgulho, o primeiro broto do diabo, se não se extirpou o amor do dinheiro, raiz de todos os males, posto que, segundo o sábio Salomão, “a pobreza humilha um homem”. Em resumo, é impossível que um homem seja atingido por um demônio se antes não foi coberto de ferimentos por estes mesmos assaltantes. Eis porque são estes três pensamentos que o diabo propôs ao Salvador quando da tentação: primeiro demandando que as pedras se tornassem pães, em seguida prometendo o mundo inteiro se ele se prosternasse a seus pés, e terceiro dizendo que, se obedecesse, seria glorificado por não ter sofrido qualquer dano de uma tal queda. Mostrando que esta acima de tudo isso, nosso Senhor comandou ao diabo a se retirar, e nos ensinou assim que não é possível rechaçar o diabo senão depois de ter desprezado os três ditos pensamentos.
2. Todos os pensamentos demoníacos introduzem na alma representações de objetos sensíveis, cuja inteligência recebe a marca e porta em seguida nela as formas. E doravante pelo objeto mesmo, ela reconhece o demônio que se aproxima; por exemplo, se há em meu espírito a face daquele que me aborreceu ou que me ultrajou, é a prova que o pensamento de rancor me visita; ou ainda, se há lembrança de riquezas ou de glória, segundo o objeto se reconhecerá claramente aquele que nos oprime; e igualmente para os outros pensamentos, é pelo objeto que descobrirás qual demônio está aí e sugere as imagens. Não que eu pretenda que todos as lembranças destes objetos venham dos demônios, pois naturalmente também a inteligência ela mesma, abalada pelo homem, faz ressurgir as imagens das coisas passadas, mas falo de todas as lembranças que conduzem a uma cólera ou a uma concupiscência contra natureza. Com efeito, por conta da perturbação destes dois poderes, a inteligência comete um adultério em espirito e ela luta pois, Deus lhe tendo feito uma lei, ela não pode acolher a imagem. Na condição todavia que esta clareza se deixe entrever à razão durante a oração na ausência de todas as representações das coisas.
3. O homem não repudiaria as lembranças apaixonadas se não velasse sobre a concupiscência e a cólera, esgotando uma pelos jejuns, as vigílias e o deitar sobre o solo duro e acalmando a outra pela paciência, a resignação, a ausência de rancor e a esmola. Destas duas paixões, com efeito, nascem quase todos os pensamentos demoníacos que conduzem a inteligência à ruína e à perdição.
E é impossível se tornar mestre destas paixões se não se menospreza completamente os alimentos, as riquezas, a glória, e além do mais seu próprio corpo por causa daqueles que buscam frequentemente a insuflá-lo.
De alta necessidade, é preciso ainda imitar aqueles que estão em perigo no mar, que jogam suas cargas ao mar por causa da violência dos ventos e do crescimento das ondas. Deve-se no entanto velar com cuidado, quando se joga a carga, e não fazê-lo para ser visto pelos homens. Pois assim perdemos nosso salário, e ainda decorre para nós um naufrágio ainda mais terrível, causado pelo demônio oposto, o espírito da vanglória. Eis porque nosso Senhor, dando lição à inteligência que é o piloto, diz: “Guardai, quando fazes a esmola, não o faça em presença dos homens para serdes vistos dos homens, pois então não tereis salário junto de vosso Pai dos céus”. E ainda: “Quando oreis, não sejais como os hipócritas, que amam orar nas sinagogas e nas praças para serem vistos pelos homens. Em verdade, vos digo, eles já receberam seu salário”. “Quando jejuais, não tomais um ar sombrio como os hipócritas. Eles tomam um face desfeita para bem mostrar aos homens que jejuam. Em verdade, vos digo, receberam seu salário”.
Mas é preciso considerar aqui o médico das almas, como ele cuida a cólera pela esmola, e como purifica a inteligência pela oração. Pelo jejum também, esgota a concupiscência. É destes elementos que é formado o Adão novo, aquele que é renovado à imagem daquele que o criou e em quem, graças a impassibilidade, não há mais nem homem e mulher, e em quem não há mais, graças à fé, nem grego e judeu, nem circunciso e incircunciso, nem bárbaro e cita, nem escravo e homem livre, mas o Cristo, tudo em todos.
SEGUE: SONHOS; TRISTEZA; VANGLÓRIA