Samaritana 1 [CNEJ]

Joaquim Carreira das Neves — ESCRITOS DE SÃO JOÃO
Jesus revela-se a uma mulher samaritana (4,1-26)
O bloco narrativo mais importante concentra-se no diálogo entre Jesus e a mulher samaritana, a qual, logicamente, representa e simboliza a “questão” samaritana que acabamos de expor. O estilo literário deste diálogo em que o “novo” e “óbvio” das declarações-revelações de Jesus contrasta com as incompreensões, não menos óbvias, a nível de lógica “histórica”, das perguntas da samaritana, é muito próximo do diálogo entre Jesus e Nicodemos, como também dos diálogos de Jesus com Marta e Maria e com todos os demais diálogos. Situamo-nos sempre dentro do círculo hermenêutico da retórica do Jesus joanico.

Em Jo 4, 5-15, o diálogo nasce a partir da realidade geográfica do “poço de Jacob.” Este poço ainda existe hoje e tem uma longa história bíblica, que dispensamos de estudar por razões óbvias.

Segundo a narrativa, “Jesus, fatigado pela viagem, sentou-se, sem mais, na borda do poço. Era por volta do meio-dia” (v. 6). O espaço, o lugar e o tempo são devidamente apresentados.

O espaço geográfico abrange, como vimos, toda a terra do Norte de Israel com as dez tribos separadas, o lugar é o “poço de Jacob” com toda a sua carga histórica e simbólica (cf. Gn 28, 10)1, e, finalmente, o tempo, “era por volta da hora sexta”, isto é, meio-dia. A mesma expressão sobre o tempo é usada pelo autor aquando da crucificação (Jo 19, 14). A água “viva” que jorra do poço de Jacob também vai jorrar do “lado direito” do Crucificado (19,34).

O símbolo da “água” é um dos mais significativos do quarto evangelho. Aparece 12 vezes (2,7.9; 3,5; 4,7.12.13 .14 (bis). 15; 5,7; 7,38; 13, 5; 19, 34) e sempre em lugares ou espaços de revelação. Vale a pena ler os cinco passos do nosso texto:

4, 7: “…chegou certa mulher samaritana para tirar água…”

4, 12: “Onde consegues, então, a água viva?…”

4,13-15: “Todo aquele que bebe desta água voltará a ter sede, mas, quem beber da água que eu lhe der, nunca mais terá sede: a água que eu lhe der há-de tornar-se nele em fonte de água que dá a vida eterna… Senhor, dá-me dessa água, para eu não ter sede, nem ter de vir cá tirá-la.”

E mais do que evidente que o autor opõe à água natural do poço de Jacob (Antigo Testamento) a água viva da revelação de Jesus (Novo Testamento). Desta forma, o Jesus joanico responde de maneira escatológica à repreensão de Jr 2, 13: “O meu povo cometeu um duplo mal: abandonou-me, a mim, nascente de águas vivas, e construiu cisternas para si, cisternas rotas, que não podem reter as águas.” O sinal das Bodas de Caná (água-vinho novo e melhor), o sinal de Nicodemos (água-Espírito Santo) e o sinal da água-sangue que sai do lado do Crucificado (19,34), concentram-se no sinal da Samaritana de maneira compulsiva. A água do poço de Jacob recebe, em Jesus, uma performatividade simbólica e sacramental de continuidade e descontinuidade. A velha história entre judeus e samaritanos, que tantas feridas gerou, só será curada através desta nova água e deste novo poço, Jesus.

A partir deste centro de performatividade em volta da metáfora da “água”, desenvolve-se um outro centro, o do “marido”. Nas Bodas de Caná Jesus é o noivo-marido que se confunde com o “melhor vinho” das novas núpcias de Deus com o seu povo. Agora é o “marido” que substitui os cinco maridos de Samaria. De qualquer modo, o Jesus joanico distingue entre a verdade dos samaritanos e a dos judeus, afirmando de maneira absoluta: “a salvação vem dos judeus” (v. 22). O verdadeiro Messias-Profeta não é o Taheb dos samaritanos, mas o Messias anunciado por Moisés e pelos Profetas. Acontece que os samaritanos só reconheciam como Escritura Sagrada o Pentateuco samaritano, pondo de lado os profetas e demais escritos. Jesus afirma que é preciso receber como Palavra de Deus o cânon completo das Escrituras, isto é, o dos judeus. Logo, a verdade anunciada só pode vir dos judeus e não dos samaritanos. Mas chegou a hora em que esta Palavra anunciada deixa de ser apenas anunciada para ser realizada:”Mas chega a hora — e é já — em que os verdadeiros adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e verdade… Eu sei que o Messias, que é chamado Cristo, está para vir… Sou Eu” (vv. 23-26).

A afirmação de Jesus: “Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus” (v. 22) tem sido interpretada de muitas maneiras. Há quem julgue que se trata duma glosa já que, ao longo do evangelho, Jesus manifesta-se sempre em oposição aos judeus. Mais ainda, o lado positivo desta afirmação de Jesus em relação à “salvação” que vem dos judeus, tem sido ultimamente muito defendida por causa da posição antissemita de muitos sectores religiosos e políticos2.

Este encontro com a samaritana determina a HORA escatológica de Jesus e a sua identidade ontológica — como acontece em todo o evangelho: “Mulher, acredita em mim: chegou a HORA em que, nem neste monte, nem em Jerusalém, haveis de adorar o Pai” (v. 21)… Jesus respondeu-lhe: ‘SOU EU, que estou a falar contigo” (v. 26).

Ao longo da narrativa, a mulher vai crescendo na descoberta catequética da pessoa de Jesus: ele começa por ser apenas “um judeu” (v. 9), para ser depois “Senhor” (w. 11. 15. 19a ), “um Profeta” (v. 19b) e, finalmente, “Messias-Cristo” (v. 25). Neste “crescendo” de fé catequética Jesus responde-lhe, quando ela alcança o degrau de “Messias”: “SOU EU, aquele que fala contigo” (v. 26). E a primeira vez que Jesus se apresenta como o EGO EIMI (cf. 8,24,28.58; 13,19; 18,5), cujas raízes assentam na apresentação de Deus-YHWH de Ex 3,14 (cf. Is 43,10; 45,18). A resposta de Jesus à samaritana sobre a sua identidade vai para além da compreensão da samaritana sobre a pessoa daquele homem como Messias e Profeta. Ele é AQUELE QUE É, ou seja, a presença do Deus vivo na terra. Este encontro “tinha que aontecer” porque é o encontro da manifestação-revelação da HORA DAQUELE-QUE-E. Só assim se compreende que, a partir de agora, Deus não se adora em Garizim ou Jerusalém, mas apenas em espírito e verdade, já que “Deus é espírito” (v. 24a). E só quem “nasce do Espírito é espírito” (3,6); logo, só quem nasce do Espírito compreende que adorar Deus vai para além de qualquer adoração dependente de determinantes religiosas puramente humanas e históricas, como era o caso presente das dissensões entre judeus e samaritanos3.


NOTAS


  1. Cf. Macho, A Diez , Ms. Neophyti 1. Targum Palestinense. I. Gênesis ( C. S. I. C. Madrid 1968). A tradução-explicação do Targum aramaico a Gn 28, 1O descreve que “o nosso pai Jacob levantou a pedra do parapeito do poço, de modo que o poço extravasou água e esta subiu até à superfície e continuou a extravasar durante vinte anos, o tempo da sua vida em Haran.” 

  2. Cf. Potterie, I. de la, “Nous adorons, nous, ce que nous connaissons, car le salut vient des Juifs”: Histoire de l’exégèse et interpretation de Jn 4,22, Bib 64 (1983) 74-115;Thyen, H., «Das Heil kommt von den Juden». Em Dieter Liihrmann e Georg Strecker (eds.), Kirche: Festschrift fiir Gnther Bomkamm zum 75. Geburstag. (J. C. B. Mohr,Tubingen 1980) 163-184. 

  3. Cf. Betz, O., “To “Worship in Spirit and in Truth”: Reflections on John 4, 20-26.” Em Finkel, A. e Frizzel, L. (eds.), Standing Before God: Studies on Prayer in Scriptures and in Tradition with Essays in Honor of John M. Oesterreicher. (Ktav, New York 1981) 53-72; Freed, E. D.,”The Manner of Worship in John 4,23f.”.Em Search the Scriptures: New Testament Studies in Honor of Raymond T. Stamm. Gettysburg Theological Studies 3. (E.J. Brill, Leiden 1969) 33-48; Haacker, K., “Gottesdienst ohne Gotteserkenntnis:Joh 4,22 vor dem Hintergrund des jüdisch-samaritanischen Auseinandersetzung.” Em Benzing, B, Bocher, O., e Gunter Mayer (eds.), Wort und Wirklichkeit: Studien zur Afrikanistik und Orientalistik Eugen Ludwig Rapp zum 70. Geburstag Herausgegeben. (Hain, Meisenheim 1976) 110-126.