Resumo de capítulo da seção “O Cristianismo e seu Mistério”
Mistério e Doutrina
Capítulo consagrado essencialmente ao mistério sob seu aspecto doutrinal, onde se estuda a história da palavra e da coisa em uma série de artigos que vão do Novo testamento aos Padres até o século IV. A preocupação constante é situar o “mistérico” cristão em relação aos contextos culturais judeu e helenístico nos quais se desenvolveu. E se verá igualmente o que se precisa pensar da existência de tradições secretas no cristianismo das origens e de seu conteúdo, principalmente em Clemente de Alexandria e Orígenes.
O mistério do “cristianismo”
Dom Odon Casel, em um livro célebre aparecido em 1932 (“O mistério do culto no cristianismo”) escreve: “O cristianismo não é uma “religião”, nem uma “confissão” segundo a acepção moderna destas palavras; quer dizer que não é um sistema de verdades especulativas e dogmáticas que se admite e confessa, um conjunto de preceitos morais que se observa ou pelo menos se reconhece. Se dúvida o cristianismo possui seus dogmas e sua lei moral, mas isso não esgota sua natureza”. O cristianismo, adiciona, não é a “religiosidade onde o elemento sentimental e subjetivo desempenha o papel principal. (…) São Paulo resume e condensa todo o cristianismo, todo o “Evangelho”, na palavra “mysterium”. Para o Apóstolo, esta expressão não significa apenas um ensinamento oculto e misterioso das coisas divinas”. Eis aí, precisa Dom Casel, um sentido tardio e que vem da “filosofia da da baixa antiguidade”. Para São Paulo “mysterium significa a princípio uma ação divina, a realização de um desígnio eterno de Deus, que se realiza no tempo e no mundo e que tem sua finalização, seu fim, na Escritura mesma”.
Dom Casel sustenta que a fonte filológica (não teológica) do vocabulário mistérico de ((Paulo Apostolo) se encontra na literatura helenística dos cultos de mistério.
Sabe-se que a denominação de “cristãos” foi dada pela primeira vez em Antioquia, por volta dos anos 40, aos discípulos de Jesus de Nazaré pode ser pelas autoridades romanas, posto que os judeus os designam pelo nome de “nazareanos” e que os discípulos entre eles se chamavam os “santos”, os “irmãos” ou os “discípulos”. Christianos deriva de Christos, termo pelo qual os judeus helenizados traduzem, nas Septuaginta, o hebreu machiah, que a princípio, poderia ser igualmente transcreve sob a forma greco-latina messias. O hebreu machiah significa “ungido”, “consagrado pela unção”, ou ainda e muito precisamente “aquele que foi marcado pela unção com vistas a exercer uma função sagrada”.
A obra do Cristo, segundo revelam os Evangelhos, comporta primeiramente um ser, segundo um ensinamento e terceiro um agir. Este ser é uma obra: é a encarnação pela qual a Pessoa do Verbo une sua natureza divina a uma natureza humana, pela operação do Espírito Santo. A primeira obra de Jesus Cristo é de ser aí, entre nós: “Eu sou”. O ato de ser pelo qual se introduz em nosso mundo a graça da união hipostática: Jesus é a encarnação mesma da graça. Deste ser-graça decorre por um lado um ensinamento teológico, relativo ao conhecimento de Deus (essencialmente a Trindade) e por outro lado um ensinamento moral e espiritual (essencialmente o amor de Deus e do próximo).
Mais essencial que a obra de ensinamento é a obra do agir crístico, posto que ela restaura a humanidade na amizade divina. Todos os profetas falaram, nenhum realizou o ato por seu próprio sacrifício “para a glória de Deus e a salvação do mundo”. Aqui, o padre, a vítima e o ato sacrificial fazem um só. Aqui, o conteúdo da mensagem é o mensageiro ele mesmo. Eis porque o Cristo é o padre por excelência, pois nele o ser consagrado e o agir sacerdotal se identificam e só formam um.
Essa doutrina é ensinada por Tomás de Aquino que explica que os sacramentos têm dois fins: conferir a glória do Céu, e “nos conferir a receber ou transmitir aos outros tudo o que toca ao culto de Deus; e isto confere propriamente o caráter sacramental (o selo indelével que conferem batismo, confirmação e ordenação). Todo rito da religião cristã decorre do sacerdócio do Cristo. é assim manifesto que o caráter sacramental é propriamente «caráter crístico» : é ao sacerdócio do Cristo que os fieis são configurados, seguindo os caracteres que imprimem os sacramentos, caracteres que nada mais são que uma certa participação ao sacerdócio do Cristo, decorrendo do Cristo ele mesmo”.
- O sacerdócio do Cristo é “segundo a ordem de Melquisedeque”, assim como nos ensina a Epístola aos Hebreus. Porque este sacerdócio é superior àquele de Arão? Porque Melquisedeque é “sem genealogia” (agenealogetos). Entrar na ordem sacerdotal melquisedeciana, é entrar em um sacerdócio que não se transmite pelo nascimento como o sacerdócio de Arão que pertence à tribo de Levi e que exige uma mãe judia. Dito de outra forma o sacerdócio cristão não é uma casta, não está ligado à transmissão pelo sangue, mas à transmissão pelo Espírito Santo. Estamos aqui em um regime cultural outro que o dos brâmanes no hinduísmo, o que só se explica se admitimos que o sacerdócio crístico constitui propriamente a forma suprema do sacerdócio universal. Seguramente, é ainda uma forma, não a essência mesma do sacerdócio (a qual nos remeteria ao mistério trinitário). Eis porque este sacerdócio é nomeado “segundo a ordem de Melquisedeque”, quer dizer, exatamente (de acordo com o hebreu al-dibrati) “à maneira”, “segundo o tipo melquisedeciano”: o Cristo não membro da ordem da qual Melquisedeque seria o chefe; mas ao contrário é Melquisedeque que é “à semelhança do Filho de deus” (aphomoiomenos to uio tou theou, Heb, VII,3), vide Tourniac Melquisedeque.
Os “mistérios” do paganismo
Após vasta literatura consagrada as relações entre os mistérios pagãos e a doutrina paulina, a ciência moderna considera a noção de mysterion, tal qual aparece no Novo Testamento é teologicamente de origem judaica. É também o emprego que faz a “apocalíptica judaica dominante entre o século II AC e o século I AD, que pretende revelar (apocalypsis = desvelar) os segredos do mundo celeste e de sua eventual manifestação futura. A herança judaica fixada no termo mysterion pela Septuaginta, traduzindo o aramaico raz ou o hebreu sod, que designam uma “coisa secreta”, aparece frequentemente nos livros tardios de Tobias, Judite, Sabedoria, Daniel, Macabeus II.
Embora a noção seja originária da tradição judaica representada no Antigo Testamento, é preciso compreender a noção grega de mysterion que foi adotada para representá-la.
Etimologia e vocabulário
Obscura etimologia. termo composto de my- e terion. Este radical my derivaria de muo = “fecho meus lábios”; o que muitos consideram uma “etimologia popular”. Seria melhor derivá-lo do verbo mueo, que tardiamente significaria “iniciar aos mistérios”. Quanto ao sufixo -terion, serve frequentemente para designar o lugar relativo à ação ou ao estado significado pelo radical ao qual é associado: baptisterion = sala de banho, telesterion = prédio da iniciação, chreterion = sala dos oráculos, monasterion = habitação do solitário, etc.
Frequentemente o termo encontra-se no plural e refere-se às festas rituais. Ao passo que mystes designa o iniciado, aquele que recebeu a iniciação, mas igualmente o iniciador.
A esta família derivada de mys, deve-se incluir outra que faz em parte concorrência e que é construída sobre outro radical: -tel, que se encontra em telos, a “meta”, o “fim”, o “termo”: donde a ideia de perfeição, de realização, de completude. O sentido é menos iniciático que para os derivados de mys. Entretanto telein significa “iniciar”, mas também “realizar” ou “clebrar”: telete (teletai no plural) designa a “iniciação”, mas também a festa ou o rito; telestes, o “sacerdote da iniciação”; etc.
A aproximação destes dois termos gregos, se deu através do latim, especialmente Cícero que teve um papel importante na constituição do vocabulário filosófico e mistérico do latim. É assim que as palavras initia (as “realidades sagradas”), initiatio (“iniciação”) e initiare (“iniciar”) foram escolhidas para traduzir mysteria, myesis e myein, determinando o vocabulário iniciático do cristianismo latino e de todo o Ocidente. Se em grego é a ideia de telos, de fim, de realização que serviu à designação da iniciação, em latim é a ideia de início e de começo, ou ainda a ideia de “adentrar” de “penetrar em algo”: initium e in-ire.
Aristóteles em uma fórmula célebre que será retomada por Dionísio o Areopagita nos ensina que “nos mistérios, trata-se mais de experimentar (pathein) que de conhecer (mathein)”. Nos mistérios pagãos a parte doutrinal é secundária, até inexistente, em relação ao “vivido religioso”.
- Caracteres gerais dos mistérios pagãos
Primeira característica é o segredo, o esoterismo formal, embora os “Grandes Mistérios” fossem festas públicas. A regra da iniciação, no entanto, é do silêncio, simbolizado por uma cesta em madeira, dada ao iniciado e que ele deveria guardar, a “cista mystica”. Os mysteria eram arrheta, “indizíveis”, porque a palavra era impotente a exprimi-los, não porque era preciso ocultá-los.
Segunda característica é o aspecto comunitário ou social da questão. Não se trata de organizações fechadas a alguns poucos adeptos. Pode-se obter mais de uma iniciação, a diferentes deuses, aderindo-se a thiase, forma de comunidade (koinon) que evoca a organização iniciática tal como a define Guénon, mas dela se sai como de sai de um clube depois de ser admitido. Mesmo as crianças podem ser iniciadas.
Percebe-se a existência de linhagens familiares aristocráticas que garantem uma certa permanência da instituição através do tempo. Assim sobreviveram as iniciações mistéricas da antiguidade. Do mesmo modo o clero que garante as funções mistéricas constituem uma grupo bastante estável no espaço e no tempo. Não há iniciados “laicos” e portanto nada que se assemelhe ao que o cristianismo nascente denominará Ekklesia (Igreja), termo que deriva de um verbo grego que significa “chamar”, “con-vocar”, quer dizer “reunir pela voz”: é a Palavra de Deus que faz a Ekklesia.
A terceira característica é a relação problemática entre os mistérios e a doutrina teológica. Platão já se queixava na Carta VII, que a fraternidade que unia os iniciados nos mistérios não se fundasse sobre a unidade de uma verdadeira doutrina filosófica.
A quarta característica é a denominada “experiência extraordinária”: quais efeitos a iniciação mistérica produz na alma do iniciado? Pelo dito de Aristóteles acima se deduz uma experiência vivida na iniciação, portanto algum efeito. Este efeito é contestado como mágico, simpatia (sympatheia), e outros de natureza teúrgica, que demonstram a afirmação de Paulo Apostolo de que, com todos estes efeitos, o iniciado ainda se mantém prisioneiro das forças cósmicas.
Em resumo, a característica mais comum de todas é que a iniciação garante um bom destino póstumo, enquanto aqueles que não receberam não conhecerão depois da morte que um estado vegetativo ou tenebrosos tormentos.
- Mistérios pagãos e sacramentos cristãos
O mysterion teologal no Novo Testamento
- Nos evangelhos
- Em São Paulo
O triplo mysterion da doutrina cristã
O mistério cristão e as tradições esotéricas do rabinismo
As tradições secretas em Clemente de Alexandria
Esoterismo e conhecimento em Orígenes
O esoterismo doutrinal dos primeiros séculos
- O Cristo ensinou oralmente a doutrinas de fé aos Apóstolos
- As chaves da gnose só foram confiadas a quatro discípulos
- O Magistério doutrinal na Tradição cristã