Agostinho: pecado

És grande, Senhor e infinitamente digno de ser louvado; grande é teu poder, e incomensurável tua sabedoria. E o homem, pequena parte de tua criação quer louvar-te, e precisamente o homem que, revestido de sua mortalidade, traz em si o testemunho do PECADO e a prova de que resistes aos soberbos. Todavia, o homem, partícula de tua criação, deseja louvar-te. Confissões I, I

Escuta-me, ó meu Deus! Ai dos pecados dos homens! E quem isto te diz é um homem, e tu te compadeces dele porque o criaste, e não foste autor do PECADO que nele existe. Confissões I, VII

Quem me poderá lembrar o PECADO da infância, já que ninguém está diante de ti limpo de PECADO, nem mesmo a criança cuja vida conta um só dia sobre a terra? Quem mo recordará? Confissões I, VII

Assim, se fui concebido em iniquidade, e se em PECADO me alimentou minha mãe, onde, suplico-te, meu Deus, onde, Senhor, eu, teu servo, onde e quando fui inocente? Mas eis que silencio sobre esse tempo. Para que ocupar-se dele, se dele já não conservo nenhuma lembrança? Confissões I, VII

Contudo, Senhor meu, ordenador e criador da natureza, mas do PECADO somente ordenador, eu pecava; pecava desobedecendo as ordens de meus pais e mestres, uma vez que podia no futuro fazer bom uso das letras que desejavam me ensinar, qualquer que fosse sua intenção. Confissões I, X

Mas, meu Deus, suplico-te que me mostres, se te apraz, por que motivo se diferiu então meu batismo; se foi ou não para meu bem que me soltaram as rédeas do PECADO. Por que razão ainda hoje se diz de uns e de outros, como ouvimos em muitos lugares: “Deixe que faça o que quiser, porque ainda não está batizado” — embora não digamos da saúde do corpo: “Deixe que receba ainda mais feridas, porque ainda não está curado?” Confissões I, XI

Porque odiava eu as letras gregas, que me ensinavam quando eu era criança? Não o sei, e nem agora o posso explicar. Em compensação, as letras latinas me apaixonavam, não as ensinadas pelos professores primários, mas a que é explicada pelos chamados gramáticos, porque aquelas primeiras, com as quais se aprende a ler, a escrever e a contar, não me foram menos pesadas e insuportáveis que as gregas. Mas donde podia proceder essa aversão, senão do PECADO e da vaidade da vida, porque eu era carne e vento que caminha e não volta? Confissões I, XIII

Mas eu não o sabia, e me precipitava com tanta cegueira, que me envergonhava entre os companheiros de minha idade, de ser menos torpe do que eles. Os ouvia jactar-se de suas maldades, e gloriar-se tanto mais quanto mais infames eram; assim eu gostava de fazer o mal, não só pelo prazer, mas ainda por vaidade. O que há de mais digno de vitupério do que o vicio? E, contudo, para não ser escarnecido, tornava-me mais viciado e, quando não houvesse cometido PECADO que me igualasse aos mais perdidos, fingia ter feito o que não cometera, para que não parecesse mais abjeto quanto mais inocente, e tanto mais vil quanto mais casto. Confissões II, III

É certo, Senhor, que tua lei pune o furto, lei tão arraigada no coração dos homens que nem a própria iniquidade pode apagar. Que ladrão há que suporte com paciência que o roubem? Nem o rico tolera isto a quem o faz forçado pela indigência. Também eu quis roubar, e roubei não forçado pela necessidade, mas por penúria, fastio de justiça e abundância de maldade, pois roubei o que tinha em abundância, e muito melhor. Nem me atraía ao furto o gozo de seu resultado, mas atraía-me o furto em si, o PECADO. Confissões II, IV

Aí está meu coração, Senhor, meu coração que olhaste com misericórdia quando se encontrava na profundeza do abismo. Que este meu coração te diga agora que era o que ali buscava, para fazer o mal gratuitamente, não tendo minha maldade outra razão que a própria maldade. Era hedionda, e eu a amei; amei minha morte, amei meu PECADO; não o objeto que me fazia cair, mas minha própria queda. Ó torpe minha alma, que saltando para fora do santo apoio, te lançavas na morte, não buscando na ignomínia senão a própria ignomínia? Confissões II, IV

Aquele, pois, que, chamado por ti, seguiu tua voz e evitou todas estas coisas que lê de mim, e que eu recordo e confesso, não se ria de mim por haver sido curado pelo mesmo médico que o preservou de cair enfermo, ou melhor, de que adoecesse tanto. Antes, esse deve amar-te tanto e ainda mais do que eu, porque o mesmo que me curou de tantas e tão graves enfermidades, esse mesmo o livrou de cair no PECADO. Confissões II, VII

Porém, como não achava deleite algum nas pêras, colocava este no próprio PECADO, que consistia na companhia dos que pecavam comigo. Confissões II, VIII

Mas, que PECADO pode atingir a ti, que não és atingido pela corrupção? Ou que crimes podem ser cometidos contra ti, a quem ninguém pode causar dano? O que vingas são os crimes que os homens cometem contra si, porque, mesmo quando pecam contra ti, agem impiamente contra suas próprias almas, e sua iniquidade engana-se a si própria, quer corrompendo e pervertendo sua natureza — feita e ordenada por ti — quer usando imoderadamente das coisas permitidas, ou até desejando imoderadamente as não permitidas, pelo uso daquilo que é contra a natureza. Confissões III, VIII

Mas o verdadeiro motivo de eu sair de Cartago e ir para Roma só tu, ó Deus, o sabias, sem manifestá-lo a mim nem à minha mãe, que chorou amargamente minha partida, seguindo-me até o mar. Mas tive de enganá-la, porque me agarrava com força, instando-me a desistir de meu propósito ou a levá-la comigo. Fingi pois que tinha que me despedir de um amigo que eu não queria abandonar, até que, soprando o vento, ele pudesse navegar. Assim enganei a minha mãe, e a uma tal mãe! Fugi, e tu também me perdoaste este PECADO misericordiosamente, salvando-me a mim, cheio de execráveis imundícies, das águas do mar para que chegasse ás águas de tua graça. Purificado com elas, secariam os rios dos olhos de minha mãe, com que todos os dias regava a terra diante de ti, por minha causa. Confissões V, VIII

Em Roma fui colhido pelo flagelo de uma doença corporal, que esteve a ponto de me mandar para a sepultura, carregado de todos os pecados cometidos contra ti, contra mim e contra o próximo; pecados numerosos e pecados, que se somavam à cadeia do PECADO original, pelo qual todos morremos em Adão. Ainda não me tinhas perdoado nenhum deles em Cristo, nem ele havia apagado com sua cruz as inimizades que contraíra contigo com meus pecados. E como poderia ele desfazê-los por uma cruz de onde eu não via pender mais que um fantasma? Porque tão falsa me parecia a morte de sua carne como verdadeira a morte de minha alma, e tão verdadeira a morte de sua carne como falsa a vida de minha alma, que disto se não persuadia. Confissões V, IX

Ainda então me parecia que não éramos nós que pecávamos, mas não sei que estranha natureza que pecava em nós; por isso minha soberba se deleitava em me ter como isento de culpa, e portanto de todo desobrigado a confessar meu PECADO, quando agia mal, para que pudesses curar minha alma que te ofendia. Antes, gostava de me desculpar, acusando a não sei que ser estranho que estava em mim, mas que não era eu. Na verdade, eu era tudo aquilo, embora minha impiedade me tivesse dividido contra mim mesmo. E o mais incurável de meu PECADO era justamente o não me considerar pecador, preferindo, minha execrável iniquidade, que fosses vencido em mim, para minha perdição, ó Deus onipotente, a que vencesses minha alma para minha salvação. Ainda não tinhas posto guarda diante da minha boca, nem porta de proteção ao redor de meus lábios, a fim de que meu coração não se inclinasse para as más palavras, nem buscasse desculpas para seus pecados, como os homens prevaricadores. Eis a razão pela qual eu ainda mantinha relações de amizade com os eleitos dos maniqueus. Mas, desesperado de poder progredir para a verdade dentro daquela falsa doutrina, contentava-me a segui-la até encontrar algo melhor, professando-a já com mais liberdade e frouxidão. Confissões V, X

O fato de eu ter a consciência de possuir uma vontade, como tinha consciência de minha vida, era o que me erguia para a tua luz. Assim, quando queria ou não queria alguma coisa, estava certíssimo de que era eu, e não outro, o que queria ou não queria, e então me convencia de que ali estava a causa do meu PECADO. Quanto ao que fazia contra a vontade, notava que isso mais era padecer do mal do que praticá-lo; julgava que isso não era culpa, mas castigo, que me instava a confessar justamente ferido por ti, considerando tua justiça. Confissões VII, III

Porque, embora o homem se deleite com a lei de Deus, segundo o homem interior, que fará dessa outra lei que luta em seus membros contra a lei de seu espírito, e que o prende sob a lei do PECADO, impressa em seus membros? Porque tu és justo, Senhor; nós, porém, pecamos, cometemos iniquidades; procedemos como ímpios, e tua mão se fez pesada sobre nós, e é com justiça que fomos entregues ao pecador antigo, ao príncipe da morte, porque ele persuadiu nossa vontade a se conformar à sua, que não quis persistir com tua verdade. Confissões VII, XXI

Há ainda outra espécie de ímpios; os que, conhecendo a Deus, não o glorificam como Deus, nem lhe renderam graças. Eu também tinha caído nesse PECADO; mas tua destra me amparou e libertou, colocando-me em lugar onde me pudesse curar; e disseste ao homem: Eis que a piedade é a sabedoria. E ainda: Não queiras parecer sábio, porque os que se dizem sábios tornaram-se insensatos. Confissões VIII, I

Em vão me deleitava em tua lei, segundo o homem interior, porque em meus membros outra lei combatia a lei de meu espírito, mantendo-me cativo sob a lei do PECADO que estavas em meus membros. Com efeito, a lei do PECADO é a violência do hábito, pelo qual a alma é arrastada e presa, mesmo contra sua vontade, merecidamente porém, pois se deixa arrastar por vontade própria. Pobre de mim! Quem poderia libertar-me deste corpo de morte senão tua graça, por Cristo, nosso Senhor? Confissões VIII, V

Quando eu deliberava dedicar-me ao serviço do Senhor meu Deus, como de há muito me tinha proposto, eu era o que eu queria, e lera o que eu não queria. Mas, nem queria plenamente, nem deixar de querer por completo. Por isso lutava comigo mesmo, e me dilacerava a mim mesmo. Essa destruição, embora involuntária, não mostrava, contudo, a presença em mim de uma alma estranha, mas apenas o castigo de minha alma. E por isso já não era eu quem mo infligia, mas o PECADO que habitava em mim, como castigo de PECADO cometido livremente, por ser eu filho de Adão. Confissões VIII, X

Talvez alguns de teus servos, meus irmãos, dirá que pequei nisso porque, estando com o coração já cheio de desejos de te servir, consenti ficar mais uma hora sentado na cátedra da mentira. Não discutirei. Mas tu, Senhor misericordiosíssimo, acaso não me perdoaste e resgataste também este PECADO, junto com todos os demais horrendos e mortais na água santa do batismo? Confissões IX, II

Juntamos também a nós o jovem Adeodato, filho carnal de meu PECADO; a quem dotaste de grandes qualidades. Tinha cerca de quinze anos, mas por seu talento ultrapassava já muitos homens maduros e doutos. Confesso-te que eram dons teus, meu Senhor e meu Deus, criador de todas as coisas, tão poderoso para corrigir nossas deformidades, pois este menino nada havia de meu, senão meu PECADO. Se o criei em tua disciplina, foste tu, e mais ninguém, quem no-lo inspirou. Sim, confesso que eram dons teus. Confissões IX, VI

Agora digo exultando ao meu Senhor em que estado me encontro neste gênero de PECADO, com tremor pelos dons que já me concedeste, e gemendo pelas minhas imperfeições. Confissões X, XXX

O dia me traz novo PECADO, e oxalá fosse o único! Comendo e bebendo, restauramos as diuturnas perdas de nosso corpo, até o dia em que destruirás o alimento e o estômago, matando minha necessidade com uma maravilhosa saciedade, e revestindo este corpo corruptível de eterna incorruptibilidade. Confissões X, XXXI

Assim, oscilo entre o perigo do prazer e a constatação dos efeitos salutares do canto. Por isso, sem emitir juízo definitivo, inclino-me a aprovar o costume de cantar na igreja, para que, pelo prazer do ouvido, a alma ainda muito fraca, se eleve aos sentimentos de piedade. E quando me comovem mais os cantos do que as palavras cantadas, confesso meu PECADO e mereço penitencia, e então preferiria não ouvir cantar. Confissões X, XXXIII

Procuravam um mediador para purificá-los, mas não o encontraram, senão ao demônio transfigurado em anjo de luz, que justamente por não possuir corpo de carne, seduziu-lhes fortemente a carne orgulhosa. Eram eles mortais e pecadores, e tu, Senhor, com quem eles procuravam com soberba reconciliar-se, és imortal e sem PECADO. Confissões X, XLII

E aquele falso mediador que é o demônio, a quem teus ocultos juízos permitem que iluda a soberba, tem de comum com os homens apenas uma coisa, isto é, o PECADO. Finge contudo, ter algum traço em comum com Deus, e como não está revestido de carne mortal, pretende ser imortal. Mas, como a morte é o salário do PECADO, ele tem isso em comum com os homens: como eles, ele é condenado à morte. Confissões X, XLII

E repousarei imutável em ti, em tua verdade, na minha forma. não mais tolerarei as perguntas das pessoas que, pela enfermidade que é a pena de seu PECADO, tem mais sede de saber do que lhes permite sua capacidade, que dizem: “Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?” — ou ainda: “Como lhe veio a ideia de criar algo, se antes nunca fizera nada” — Concede-lhes, Senhor, que reflitam no que dizem, que compreendam que não se pode falar nunca onde não há tempo. Quando se diz que alguém nunca fez nada, que se quer dizer senão que esse tal nada fez em tempo algum? Que eles compreendam que não pode existir tempo na ausência da criação, e deixem de semelhantes falácias. Confissões XI, XXX

Também disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que todas as naturezas, todas as substâncias que não são o que és, mas que existem, tu as criaste; que só o nada não provém de ti, assim como o movimento de uma vontade que se afasta de ti, Ser supremo. Enfim, que nenhum PECADO te causa dano, nem perturba a ordem de teu império, superior ou inferior. Essa verdade é clara para mim em tua presença. Peço-te que se torne para mim cada vez mais clara, e que sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência. Confissões XII, XI

Minha , que acendeste à noite para conduzir meus passos, lhe diz: “Por que está triste, ó minha alma, e por que me perturbas? Espera no Senhor. Seu Verbo é uma lâmpada para teus passos. Espera, persevera, até que a noite passe, a noite, mãe dos iníquos, até que passe a ira do Senhor, ira da qual outrora fomos filhos quando éramos trevas”. — Dessas trevas ainda arrastamos os restos neste corpo morto pelo PECADO, até que alvoreça o dia e se dissipem as sombras. Espera no Senhor. Desde a manhã estarei diante deles, e o contemplarei, e o louvarei eternamente. Desde a manhã estarei diante dele e verei a salvação de minha face, meu Deus, que vivificará nossos corpos mortais pelo seu Espírito que habita em nós, misericordiosamente levado por sobre as águas tenebrosas de nossas almas. Confissões XIII, XIV

E quem, senão tu, nosso Deus, estendeu sobre nós um firmamento de autoridade, da tua divina Escritura? O céu se dobrará como um livro, e agora ele se estende sobre nós como um pergaminho. Mais sublime é a autoridade de que goza tua divina Escritura depois que morreram aqueles que cujo intermédio no-las comunicaste. E sabes, Senhor, sabes como cobriste de peles os homens, quando o PECADO os tornou mortais. Por isso estendeste como um pergaminho o firmamento de teu Livro, e tuas palavras em tudo concordes, que dispuseste sobre nós pelo ministério de homens mortais. Por sua morte, a autoridade de tuas palavras, por eles divulgadas, desdobra sua força sobre tudo o que existe em baixo; ela não se erguia tão alto enquanto eles viviam. É que ainda não tinhas desenrolado o céu como um pergaminho, nem tinhas ainda difundido a glória de sua morte por toda parte. Confissões XIII, XV