ESCOTO ERIUGENA — ANÁLISE DO TRATADO «DA DIVISÃO DA NATUREZA».
Nicola Abbagnano — História da Filosofia
DIVINDADE DO HOMEM
Circula em toda a obra de João Escoto o sentido do valor superior e divino do homem. O pessimismo próprio dos pensadores cristãos, e até de Santo Agostinho, sobre a natureza e o destino do homem, parece atenuar-se neste filósofo até se transformar em exaltação do homem, das suas capacidades e do seu êxito final. «O homem, afirma, não foi chamado imerecidamente fábrica de todas as criaturas; com efeito, todas as criaturas se contêm nele. Compreende como o anjo, raciocina como homem, sente como animal irracional, vive como o verme, compõe-se de corpo e alma e não carece de nenhuma coisa criada». Em certo sentido, o homem é superior ao próprio anjo que, por carecer de corpo, não tem sensibilidade, nem movimento vital (III, 37).
Muito significativas são as considerações que Escoto tece, com visível complacência, em torno do tema «se o homem não pecasse…». Se o homem não pecasse seria de certo omnipotente como Deus. Com efeito, nada o separaria de Deus, e ele, que é a imagem de Deus, participaria totalmente na perfeição do seu modelo. Pelo mesmo motivo, seria omnisciente, porque, tal como Deus, conheceria nas suas causas primordiais todas as coisas criadas. Se o primeiro homem não tivesse pecado, a semelhança entre a natureza angélica e a humana ter-se-ia transformado numa identidade, e o homem e o anjo ter-se-iam convertido numa mesma coisa. E isto explica-se porque a mesma identidade se estabelece entre homem e homem, quando reciprocamente se compreendem. «Se, afirma Escoto, eu compreendo o que tu compreendes, converto-me no teu próprio entendimento e de certa maneira inefável, converto-me em ti próprio. E quando tu compreendes o que eu compreendo, convertes-te no meu entendimento, e dos dois entendimentos resulta um só, constituído por aquilo que ambos sincera e corretamente compreendemos. Porque o homem é verdadeiramente o seu entendimento, o qual se especifica e individualiza pela contemplação da verdade (IV, 9).
A perfeição do homem é tão grande que nem mesmo o pecado original chega para destruí-la. Com ela o homem não perdeu a sua natureza que, enquanto imagem de Deus, é necessariamente incorruptível; perdeu apenas a felicidade, à qual estava destinado se não houvesse desprezado o mandamento divino. «É preciso afirmar, diz Escoto, que a natureza humana, feita à imagem de Deus, nunca perdeu a força da sua beleza e a integridade da sua essência e nunca poderá perdê-las. Uma forma divina como é a alma, permanece sempre incorruptível, além do mais, torna-se capaz de suportar a pena do pecado» (V, 6).
Com o mesmo optimismo Escoto considera o destino último do homem. A morte é para o homem o princípio de uma ascensão que o leva a identificar-se com Deus. Não há morte para o homem, mas o retorno a um estado antigo que perdeu ao pecar. A primeira fase deste retorno a Deus dá-se quando o corpo se dissolve nos quatro elementos de que é formado. A segunda fase é a ressurreição, na qual cada um receberá de novo o seu corpo, através da reunião dos quatro elementos. Na terceira fase, o corpo transformar-se-á em espírito. Na quarta fase, toda a natureza humana voltará às suas causas primordiais, que subsistem em Deus de forma imutável. Na quinta fase, a natureza humana, juntamente com as suas causas, mover-se-á em Deus «como o ar se move na luz» (V, 8). Este triunfo final da natureza humana não será, no entanto, uma anulação em Deus. O dissolver-se místico e panteísta do homem em Deus está excluído por João Escoto. O destino da natureza humana não é o de perder-se no ser divino, mas o de permanecer na sua verdadeira substância, de reintegrá-la nas suas causas primordiais e de subsistir na sua total perfeição o âmbito do ser divino, como o ar na luz. O misticismo neoplatônico é aqui corrigido pelo sentido do carácter irredutível da natureza humana, carácter pelo qual conserva, mesmo perante Deus, e em virtude de Deus, a sua autonomia substancial.