Monte Carmelo Livro 2 C3

São João da CruzA Subida do Monte Carmelo
Tradução das Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro
LIVRO SEGUNDO
CAPÍTULO III
Como a fé é noite escura para a alma. Prova-o com razões e autoridades da Sagrada Escritura.

1. A fé, dizem os teólogos, é um hábito da alma certo e obscuro. Chama-se hábito obscuro porque faz crer verdades reveladas pelo próprio Deus, e que estão acima de toda luz natural, excedendo, sem proporção alguma, a todo humano entendimento. Portanto, esta excessiva luz, que a alma recebe da fé, converte-se em espessa treva, porque o maior sobrepuja e vence o menor, assim como a luz irradiante do sol obscurece o brilho de quaisquer luzes, fazendo não mais parecerem luzes aos nossos olhos, quando ele brilha e vence nossa potência visual. Em vez de dar-nos vista, o seu esplendor nos cega, devido à desproporção entre o mesmo sol e a potência visual. De modo análogo a luz da fé, pelo seu grande excesso, supera e vence a luz de nosso entendimento que só alcança por si mesma a ciência natural; embora tenha, para as coisas sobrenaturais, a potência chamada obediencial, quando Nosso Senhor a quer pôr em ato sobrenatural.

2. O entendimento não pode conhecer por si mesmo coisa alguma, a não ser por via natural, isto é, só o que alcança pelos sentidos. Por este motivo, necessita de imagens para conhecer os objetos presentes por si ou por meio de semelhanças, como dizem os filósofos, ab obiecto et potentia paritur notitia, isto é, do objeto presente e da potência nasce na alma a notícia. Se falassem a alguma pessoa de coisas jamais conhecidas ou vistas nem mesmo através de alguma semelhança ou imagem, não poderia evidentemente ter noção alguma precisa a respeito do que lhe diziam. Por exemplo: dizei a alguém que em certa ilha longínqua existe um animal por ele nunca visto, se não descreverdes certos traços de semelhança desse animal com outros, não conceberá ideia alguma, apesar de todas as descrições. Por outro exemplo mais claro se entenderá melhor. Se a um cego de nascença quisessem definir a cor branca ou amarela, por mais que explicassem, não o poderia entender, porque nunca viu tais cores, nem coisa alguma semelhante a elas, para ser capaz de formar juízo a esse respeito; apenas guardaria na memória os seus nomes, percebidos pelo ouvido; mas ser-lhes-ia impossível fazer ideias de cores nunca vistas.

3. Desta maneira acontece à fé em relação à alma; diz-nos coisas jamais vistas ou entendidas em si mesmas, nem em suas semelhanças, pois não as têm. Sobre as verdades da fé não podemos ter luz alguma de ciência natural, porque não são proporcionadas aos nossos sentidos. Somente pelo ouvido cremos o que nos é ensinado, submetendo cegamente nossa razão à luz da fé. Segundo diz S. Paulo, «A fé pelo ouvido» (1 Rom 10, 17); ou como se dissesse: a fé não é ciência que se possa adquirir pelos sentidos, mas só aquiescência da alma ao que lhe entra pelo ouvido.

4. E ainda a fé transcende muito mais os exemplos referidos. Porque, além de não produzir notícia e ciência, priva e obscurece totalmente quaisquer outras notícias e ciências para que possam julgar bem dela. Com efeito, as outras ciências se adquirem com a luz do entendimento; mas a ciência da fé, sem a luz do entendimento, é que se alcança, renunciando a esta para adquirir aquela; pois com a luz natural se perde. Por isso disse Isaías: Se não crerdes, não entendereis (Is 7, 9). É evidente, portanto, ser a fé noite escura para a alma, e assim a ilumina; e quanto mais a obscurece, mais luz irradia. Porque cegando dá luz, conforme diz o profeta no texto citado: se não crerdes, não tereis luz. Assim foi figurada a fé naquela nuvem que separava os filhos de Israel dos egípcios, na passagem do Mar Vermelho. A Sagrada Escritura diz: A nuvem era tenebrosa e iluminava a noite (Êx 14, 20).

5. Admirável coisa: sendo tenebrosa iluminava a noite! Assim a fé, — nuvem tenebrosa e obscura para a alma que também é noite, pois, em presença da fé, torna-se cega e privada da luz natural, — com sua obscuridade, ilumina e esclarece a treva da alma; porque assim convinha ao discípulo ser semelhante ao mestre. O homem, segundo o ensinamento do Salmista, vivendo nas trevas só pode ser iluminado por outras trevas: «O dia anuncia ao dia esta verdade e a noite mostra sabedoria à noite» (Sl 18, 3). Mais claramente quer dizer: O dia, que é Deus na bem-aventurança, onde já é de dia para os Anjos e Santos que também são dia, anuncia e comunica-lhes a palavra eterna que é seu Divino Filho, para que o conheçam e o gozem. E a noite, que é a fé na Igreja militante, onde ainda é de noite, comunica a ciência à Igreja, e por conseguinte a toda alma, que, em si mesma, é noite, porque ainda não goza da clara sabedoria beatífica, e diante da fé fica privada da sua luz natural.

6. Portanto, seja esta a nossa conclusão: a fé, escura noite, ilumina a alma, que também é noite escura, e se verificam então as palavras de David a este propósito: «A noite se converte em claridade para me descobrir as minhas delícias» (Sl 138, 11). Isto é: nos deleites de minha pura contemplação e união com Deus, a noite da fé será minha guia, evidenciando-se que a alma há de estar em treva para ter luz neste caminho.