Carmelo Noite Passiva x Ativa

João da CruzSubida do Monte Carmelo

VIDE: NOITE PASSIVA
NOITE ATIVA
Edith Stein: A ENTRADA ATIVA NA NOITE, FORMA DE SEGUIR A CRUZ (NOCHE ACTIVA)

O ponto de partida — a primeira fase — é chamado por João da Cruz de Noite escura dos sentidos.1 O que importa nesse ponto é a mortificação do desejo de todas as coisas. Não se trata, por certo, de extinguir a percepção dos sentidos: eles são como janelas pelas quais recebemos a luz de nossa inteligência enquanto estivermos no cárcere escuro da existência corporal e, enquanto existirmos, deles não poderemos prescindir. Devemos, porém, aprender a ver. a ouvir etc… como se não víssemos ou ouvíssemos nada. O que deve mudar é a nossa atitude fundamental em face do mundo sensível. Esta atitude do homem natural não é, via de regra, somente a de um ser racional — ele encontra-se no mundo como ser sensível, com desejos e aspirações — e como homem de ação. O homem vê-se preso ao mundo por mil laços, porque o mundo lhe oferece aquilo que o satisfaz, estimula-o a agir e é o próprio objeto de suas ações. De modo geral, o homem se deixa levar pelas tendências e desejos em suas ações e condutas, na alimentação, no vestuário, no trabalho, no repouso, nos divertimentos e lazeres e também na vida social. Sente-se feliz e contente quando não encontra obstáculos extraordinários que o estorvem. Dizemos “obstáculos extraordinários” porque viver neste mundo sem dificuldade alguma não é possível; as dificuldades são tão familiares ao homem, desde a infância, que já se tornaram parte integrante de sua natureza. Ele sabe, por educação e experiência, que a livre expansão das tendências só lhe pode ser nociva, e o bom senso o levará a freá-las e dominá-las. As mesmas exigências lhe serão ditadas por respeito aos outros — imposição da vida (naturalmente social) e decorrência da lei e da ética naturais. A lei natural das tendências fica intacta em si mesma; torna-se porém equilibrada pelas demais leis e exigências. O início da Noite escura traz consigo uma total novidade: o “sentir-se em casa” neste mundo, tão natural e agradável; os prazeres que proporciona; o desejo desses prazeres e, logo em seguida, a sua aceitação. Enfim, tudo quanto constitui e representa o cotidiano do homem é, aos olhos de Deus, escuridão,2 incompatível com a Luz divina. Na alma, tudo isso tem de ser cortado pela raiz, se nela se quiser dar lugar a Deus. Corresponder a esse imperativo significa abrir luta contra a natureza humana; significa tomar sobre si a própria cruz e entregar-se à crucifixão. Nessa altura, São João lembra as palavras do Senhor: “Assim, pois, qualquer um de vós que não renuncia a tudo o que possui (e mesmo o desejo), não pode ser meu discípulo”. (Lc 14,33) O império do desejo na alma é realmente escuridão, como será comprovado: a concupiscência cansa e atormenta a alma, deixando-a em escuridão; mancha-a e esgota-lhe as forças; rouba-lhe o espírito de Deus, de quem se afastou pela entrega ao espírito animal. Lutar contra a concupiscência, ou tomar sobre si a cruz, significa entrar ativamente na noite escura. Para tanto, João da Cruz dá as seguintes instruções, afirmando que “quem se decidir seriamente a exercitar-se nelas, não necessitará de quaisquer outras”:

1) manter sempre vivo o desejo de em tudo imitar a Cristo, vivendo conforme sua vida. Para tanto é preciso meditá-la, para conduzir-se em tudo da maneira como ele o faria;

2) para realizar esse desejo com perfeição, é preciso renunciar a qualquer prazer que se ofereça aos sentidos e até afastá-lo de si, caso não contribua para a honra e glória de Deus.

Tudo há de ser feito pela alma “por amor a Jesus Cristo, o qual nesta vida não teve nem quis outro gosto que fazer a vontade de seu Pai, ao qual ele chamava de seu alimento. Se se apresentar o gosto de ouvir coisas que não importem para o serviço e glória de Deus, não as queira provar nem ouvir”. Deverá praticar igualmente a mortificação de todos os sentidos, repelindo-lhe habilmente as impressões na medida do possível; “se não puder, basta que não queira comprazer-se nisso ainda que essas coisas passem pela alma. E dessa maneira há de deixar logo mortificados e vazios desse deleite os sentidos, como no escuro. Com esse cuidado, em breve terá grande proveito”. “E para mortificar e apaziguar as quatro paixões naturais, — o prazer, a esperança, o temor e a dor — de cuja concórdia nascem esses bens e os demais, o remédio que se segue é total, muito meritório e causa de grandes virtudes:

Procure sempre inclinar-se,
não ao mais fácil, e sim ao mais difícil;
não ao mais saboroso, e sim ao mais insípido;
não ao mais gostoso, mas ao que dá menos gosto;
não ao repousante, mas ao trabalhoso;
não ao que consola, mas ao desconsolo;
não ao mais, e sim ao menos;
não ao mais alto e precioso, mas ao mais baixo e desprezível;
não a querer alguma coisa, mas ao nada querer;
não a andar buscando o melhor das coisas temporais, mas o pior;
e desejar entrar em toda a nudez, vazio e pobreza
de tudo quanto há no mundo, por amor de Cristo.

Convém abraçar de coração essas obras e procurar conformar a elas a vontade. . . O que foi dito, se bem-praticado, bastará para entrar na noite sensível”. (Subida, 1. I, c. 13, §§2-7)

Não é preciso insistir mais em que essa entrada na noite escura dos sentidos equivale a espontaneamente tomar sobre si e aceitar a cruz. Mas o simples aceitar a cruz ainda não leva à morte na cruz; ora, para atravessar inteiramente a noite é preciso que o homem morra para o pecado. O homem pode oferecer-se à crucifixão, mas não pode crucificar-se a si próprio. Eis por que aquilo que foi iniciado pela noite ativa tem de ser completado pela noite passiva, isto é, pelo próprio Deus. “Por mais que procure ajudar-se, não pode. por seu esforço, purificar-se ativamente, de modo a ficar disposta, no mínimo ponto, para a divina união da perfeição do amor, se Deus não a toma pela mão e a purifica ele próprio naquele fogo obscuro para a alma, como e no modo que havemos de dizer”. (Noite escura. Noite dos sentidos, c. 3.)

NOTAS:


  1. Esta será tratada no primeiro volume da Subida do Monte Carmelo e na primeira parte da Noite escura, intitulada Noite escura dos sentidos

  2. Esta escuridão do pecado é fundamentalmente diferente da escuridão originada em Deus; ele mesmo a suspende depois.