Ricardo de São Vítor — De Trinitate lib. III, cap. IX
A PLURALIDADE DAS SUBSTÂNCIAS NA PESSOA
Talvez possas estranhar tu que ouves ou lês isto; estranhas, digo, de como possa haver mais de uma pessoa onde não há mais que uma só substância. Porém, que pode ter de estranho aquele que é admirável em tantas obras suas; digo, que pode ter de estranho, se é admirável em si mesmo sobre todas as coisas? Parecer-te estranho haver na natureza divina mais de uma pessoa onde não há mais que uma substância; e, no entanto, não te parece estranho igualmente haver na natureza humana mais de uma substância onde não há mais que uma pessoa. Pois o homem consta de alma e corpo, e estas duas coisas juntas não são mais que uma pessoa. O homem tem, pois, um modo de ler e apreender em si mesmo o que deve pensar inversamente de seu Deus. Comparemos, se queres, o que a razão descobre raciocinando acerca da natureza divina e o que a experiência encontra na natureza humana. Em uma e outra há unidade; em uma e outra há pluralidade; lá, unidade de substância; aqui, unidade de pessoa; lá, pluralidade de pessoas; aqui, pelo contrário, pluralidade de substâncias. Lá, pois, pluralidade de pessoas na unidade da substância; aqui, pelo contrário, pluralidade de substâncias na unidade da pessoa. Eis como a natureza humana e divina parecem referir-se uma a outra e, por assim dizer, de modo oposto, e corresponder cada uma delas a outra contrariamente. Devem assim referir-se e corresponder-se mutuamente a natureza criada e a natureza incriada, a temporal e a eterna, a corruptível e a incorruptível, a mutável e a imutável, a que é tão pequena e a imensa, a que se pode circunscrever e a infinita.