XXXI Como nos dispomos à oração
1 Depois desta exposição, não me parece absurdo completar este tratado da oração, examinando de modo mais acurado a postura e as disposições que se devem guardar ao orar: o lugar da oração, em que direção se situar quaisquer que sejam as circunstâncias. Também o tempo apto a escolher para a oração, e outras questões semelhantes.
A disposição se refere à alma, a postura ao corpo. Assim Paulo, como dissemos no início do tratado, descreve a disposição, dizendo que devemos orar “sem ira nem discussão”(l Tm 2,8). A postura se exprime nestas palavras: “Levantando as mãos para o céu” (1 Tm 2,8). Fico pensando que isto é tomado dos salmos, onde se fala de “Levantar minhas mãos como oblação da tarde” (Sl 140,2). Quanto ao lugar, disse Paulo: “Quero que os homens orem em todo lugar” (1 Tm 2,8). Sobre a direção, diz Salomão no livro da Sabedoria: “Com isso lhes ensinava que deviam adiantar-se ao sol para te dar graças e antes do raiar do dia te adorar” (Sb 16,28).
2 A mim me parece que, imediatamente antes da oração, é preciso se preparar, recolhendo-se por um pouco de tempo, a fim de que a alma esteja mais atenta e diligente durante toda a oração. Ao mesmo tempo, deve-se afastar qualquer tentação e pensamento que distraiam.
Toma consciência, na medida do possível, da Majestade da qual te aproximas, pensando em como é ímpio estar em sua presença sem reverência, relaxado e com menosprezo. Deixando, finalmente, de lado tudo que te é estranho, assim irás à oração.
Levanta, antes das mãos, a própria alma; erguendo a Deus, antes dos olhos, o próprio espírito. Antes de ficar de pé, ergue da terra a parte superior da alma (tò hegemonikón) e assim te apresentarás diante do Senhor do universo. Remove de ti todo sentimento de vingança que poderás ter de uma injustiça, como tu mesmo desejas que Deus não se recorde das tuas más ações e dos pecados cometidos contra o teu próximo; e de tudo que praticaste contra a reta razão, e de que tenhas consciência.
Muitas e diferentes podem ser as posturas do corpo, mas hás de preferir a de estender os braços e olhar para o alto, porque desta maneira o corpo vem a ser imagem das características que deve a alma ter na oração. Quero dizer que se deve preferir esta posição, quando não haja alguma circunstância que o impeça.
Em determinadas ocasiões se pode orar sentado, por exemplo, se as pernas não aguentam, por causa de alguma enfermidade Pode-se também orar deitado, em caso de febre ou alguma outra indisposição. Depende das circunstâncias. Por exemplo: se viajamos por mar, ou se não podemos deixar o trabalho para acudir à oração obrigatória. Nestes casos, podemos orar, como se aparentemente não o estivéssemos fazendo.
Convém, pois, saber que quando a gente está para se acusar diante de Deus pelos próprios pecados, suplicando-lhe o perdão, é necessária também a genuflexão. Esta tem o modelo em Paulo, que se humilha e submete, dizendo: “Por isto eu dobro os meus joelhos diante do Pai, de quem deriva toda paternidade no céu e na terra” (Ef 3,14-15).
A assim chamada genuflexão espiritual, porque todos os seres se submetem a Deus no nome de Jesus e se humilham diante dele, parece-me que o Apóstolo a significa com aquela expressão: “A fim de que ao nome de Jesus todo joelho se dobre no céu, na terra e nos abismos” (Fl 2,10). Não parece que os corpos celestes tenham joelhos, eles são de forma esférica, segundo os que investigam seriamente este assunto.11
Quem não quiser admitir esta opinião, aceitará, em troca, que tem cada membro a sua função própria, pois tudo foi criado por alguma razão.
Assim, pois, se encontrará neste dilema: ou diz que Deus concedeu inutilmente membros aos corpos celestes, ou diz que também órgãos internos realizam as suas funções nos corpos celestes; é absurdo dizer que são como estátuas, com aparência de seres humanos por fora, mas que por dentro não se parecem com eles.
São estas as ocorrências, a propósito de “dobrar os joelhos” no texto: “A fim de que ao nome de Jesus todo joelho se dobre no céu, na terra e nos abismos” (Fl 2,10). O profeta diz o mesmo: “Diante de mim se dobrará todo joelho” (Is 45,23).
O lugar da oração
4 Quanto ao lugar da oração, convém saber que, desde que a pessoa ore bem, todo lugar é apto. Pois “em todo lugar se oferece incenso ao meu Nome”, diz o Senhor (Ml 1,11). E Paulo: “Quero que os homens orem em todo lugar” (1 Tm 2,8).
Mas, para que possa fazer as suas orações, mais quieto e sem distrações, cada um pode escolher um lugar particular e previamente disposto em sua habitação, se aí há espaço, por assim dizer, mais adequado, para orar.
Antes, porém, do exame geral desse lugar, ele indagará se ali nunca foi cometido nada de nefando e de contrário à reta razão.
Se algo houvesse indigno, Deus retiraria o seu olhar tanto das pessoas, como do lugar da oração. Ao refletir sobre este assunto, sugiro uma ideia que pode parecer dura, mas que não é de se desprezar a quem a considere calmamente. Trata-se do lugar onde se faz a união conjugai, coisa legítima, sem dúvida, permitida pelo Apóstolo quando diz que a sugere “como uma indulgência, não como um preceito”. Cabe, é verdade, perguntar se este seria um lugar santo e puro diante de Deus. Acho, porém, que não se deveria dar importância ao lugar, visto que nenhum dos cônjuges pode orar, separando-se por mais tempo, a não ser que haja mútuo consenso (cf. 1 Cor 7,5).
5 O lugar da oração, onde se reúnem os fiéis, tem provavelmente graça especial para nos ajudar, porque os anjos nos acompanham na assembleia dos fiéis.
Ali desce o poder de nosso Senhor e Salvador, onde se reúnem as almas dos santos, segundo creio, as dos mortos que nos precederam e, sem dúvida, também os espíritos dos santos ainda em vida, embora isto não seja fácil de explicar. Em relação aos anjos, podemos discorrer deste modo: se é d certo que “o anjo do Senhor acampa em torno dos que o temem e os livra” (Sl 33,8); se é certo o que se refere a Jacó não só de si mesmo, mas de todos os que confiam em Deus, quando diz: “O anjo que me resgatou de todo mal” (Gn 48,16), então é provável que, quando muita gente se reúne só para louvar Jesus Cristo, o anjo de cada um está perto dos que temem o Senhor, junto à pessoa que está sob sua proteção e orientação.
Por conseguinte, quando se reúnem os santos, há uma dupla igreja ou assembleia, a dos homens e a dos anjos. Se Rafael diz só a Tobias que havia apresentado a sua oração em memorial (cf. Tb 12,12) e, depois, a de Sara, que seria mais tarde sua nora pelo casamento com o jovem Tobias, se assim foi, que é conveniente dizer quando muitos se reúnem num mesmo espírito e num mesmo pensamento e formam um só corpo em Cristo?
Quanto ao poder do Senhor, (cf. 1 Cor 1,10) que é presente na Igreja, diz Paulo: “Estando nós reunidos, isto é, vós e o meu espírito com o poder do Senhor” (1 Cor 5,4), como se o poder do Senhor estivesse não somente com os Efésios, mas também com os Coríntios.
Ora, se Paulo, ainda revestido de carne, pensou que se tinha transportado em espírito a Corinto, não é temerário pensar que os bem-aventurados que já deixaram seus corpos, venham em espírito, talvez mais depressa do que aquele que ainda se acha no corpo, ao meio da assembleia.
Por tais razões, não se deve ter em pouca conta as orações que se fazem nas igrejas, porque elas são realmente algo de excelente para quem nelas toma parte.
6 O poder de Jesus, o espírito de Paulo e de outros parecidos com ele, e os anjos do Senhor protegem cada um dos santos, acompanham-nos em seus caminhos e se reúnem com aqueles que piedosamente se congregam.
Por isso, temos de procurar que ninguém, por uma vida de pecado, se faça indigno do anjo santo, e se entregue ao diabo, desprezando a Deus, por seus pecados e iniquidades. Tal pessoa, ainda que não sejam muitos nessas condições, não escapará por muito tempo à vigilância dos anjos que, cumprindo a vontade de Deus, velam pelo bem da Igreja; eles darão a conhecer publicamente os erros dessa pessoa. Mas os anjos não cuidarão daqueles que em grande número se reúnem em sociedade de negócios, para fins materiais. Assim o diz o Senhor por Isaías: “Quando vindes apresentar-vos diante de mim, e estendeis vossas mãos, tapo os meus olhos para não vos ver; mesmo que repitais amiúde as vossas orações, eu não escuto.” (Is 1,12.15).
Talvez, correspondendo ao povo santo e aos anjos bons antes mencionados, existam outras duplas agremiações de homens perversos e anjos maus. De tal consórcio poderiam dizer os anjos santos e os homens piedosos: “Não me sentarei com os falsos, não ando com hipócritas, odeio a assembleia dos malfeitores, e ao lado dos ímpios não me assento” (Sl 25,4-5).
7 Foi por isso, creio, que os habitantes de Jerusalém e de toda a Judeia foram entregues a seus inimigos. Deus os abandonou, porque com os seus muitos pecados se haviam apartado da Lei. Os anjos lhes negaram a sua proteção, e os homens bons o seu apoio.
Assim, grupos inteiros ficam abandonados e caem na tentação. “Até o que pensam ter lhes é tirado” (Lc 8,18; Mt 13,12; Mc 4,25). Como a figueira que foi amaldiçoada e arrancada pela raiz por não dar fruto quando Jesus tinha fome, se ressecaram e perderam a pouca vida de fé que tinham. Pareceu-me necessário falar dessas coisas ao tratar do lugar da oração e recomendar que prefiram fazê-la nas assembleias dos santos congregados com grande reverência na igreja.