XXVI Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu
Lucas, depois de “Venha o teu Reino”, omite esta petição e põe o seguinte: “Dá-nos cada dia o pão necessário”. Examinemos, porém, a petição, que se acha só em Mateus, conforme o comentário que vimos fazendo. Como ainda estamos na terra, nós que oramos, e entendemos que no céu é feita a vontade de Deus por todos os que lá habitam, oremos também que na terra onde estamos seja feita por nós a vontade de Deus.
Isto acontecerá, se nada fizermos senão a sua vontade. Quando a vontade de Deus, que está no céu, for cumprida por nós também na terra, seremos semelhantes aos celestes trazendo igualmente a imagem do celeste e herdaremos o reino do céu, enquanto que aqueles que nos sucederão na terra, orarão para que se tornem semelhantes a nós, que estaremos no céu.
2 As palavras: “Assim na terra como no céu”, que se encontram só em Mateus, podem igualmente aplicar-se aos outros pedidos, pois é assim que a oração nos manda dizer: “Santificado seja o teu Nome, assim na terra como no céu”; “Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu”; “Venha o teu Reino, assim na terra como no céu”.
O Nome de Deus é santificado pelos que estão no céu, e o Reino de Deus já está neles, e eles fazem a vontade de Deus. f» Tudo isso que ainda não temos nós, que estamos na terra, pode ser nosso, se merecermos que Deus nos escute quando o pedimos.
3 Como assim soa a petição: “Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu”, poderia talvez alguém perguntar: como é possível fazer a vontade de Deus no céu onde existem “espíritos malignos” (Ef 6,12), pelos quais “a espada de Deus está cheia de sangue até no céu” (Is 34,5)?
Se pedimos que se faça a vontade de Deus na terra como no céu, não estaríamos nós pedindo, sem o perceber, que os espíritos do mal permaneçam na terra, para onde baixaram do céu? Há, com efeito, muitos espíritos maus na terra, por causa dos espíritos do Mal que estão nos lugares celestes (cf. Ef 6,12).
Quem entender figuradamente a expressão “do céu”, e disser que o Cristo é o céu e a Igreja a terra — quem, de fato, é digno de ser trono do Pai senão Cristo, e quem será o escabelo dos seus pés, senão a Igreja? — resolverá facilmente a dificuldade. Pois dirá que todos os membros da Igreja devem orar para se dispor a fazer a vontade do Pai (cf Jo 4,34), como Cristo que veio para fazer a vontade do Pai (cf. Jo 6,38), levando-a a perfeito cumprimento. Porque aquele que está unido a ele, pode fazer-se um espírito com ele (cf. 1 Cor 6,17), e assim, fazer a vontade do Pai, de maneira que se faça na terra com a £ mesma perfeição que no céu. Pois, como diz S. Paulo, “Aquele que se une ao Senhor, toma-se um só espírito com ele” (1 Cor 6,17).
Creio que quem compreender bem esta interpretação, não a desprezará facilmente.
4 Se alguém contradiz essa afirmação, pode-se aduzir à palavra que o Senhor, ao final do Evangelho, diz a seus onze discípulos, depois da ressurreição: “Foi-me dado todo poder no céu e na terra” (Mt 28,18).
Já possuindo o poder sobre as coisas que estão no céu, ele diz que recebeu poder também sobre as da terra. Porque o Verbo í já havia iluminado antes os habitantes do céu, ao passo que, “na plenitude dos tempos” (Ef 1,10; Gl 4,4), quando os habitantes deste mundo chegarem a ser perfeitos como os do céu, pelo poder dado ao Filho de Deus, estas imitarão aquelas. Portanto, podemos concluir que pela oração ele quer os seus discípulos como colaboradores diante do Pai, a fim de que, sendo no céu todas as coisas submetidas à verdade e ao Verbo pelo poder a este concedido tanto no céu como na terra, o Senhor leve à perfeição bem-aventurada os que estão em seu poder.
Quem, pois, quer entender por céu o Salvador e por terra a Igreja, chamando céu o Primogênito da criação (cf. Cl 1,15), sobre o qual como num trono repousa o Pai, poderá asseverar que o homem,7 que Deus revestira do seu poder, pôde dizer depois da sua ressurreição por se ter humilhado e feito obediente até à morte: “Foi-me dado todo poder no céu e na terra”(Mt 28,18).
Porque a humanidade do Salvador recebeu poder sobre as coisas do céu, que pertencem ao Unigênito, a fim de que o homem participe com ele (o Unigênito), que está intimamente unido à Divindade, em uma só Pessoa.
5 Mas falta esclarecer a segunda questão proposta: como pode cumprir-se a vontade de Deus no céu, enquanto os espíritos malignos que habitam no céu combatem os seres terrestres? Pode-se resolver do seguinte modo esta dificuldade. Quem tem a sua “cidadania no céu” (Fl 3,20), embora ainda esteja na terra, acumula tesouros para o céu (cf. Mt 6,20). Ele tem seu coração no céu e traz a “imagem do homem celeste” (1 Cor 15,49).
Uma pessoa assim já não é mais terrena. Não se trata de questão de lugar, mas de vontade livre. Não pertence a este mundo inferior, mas ao celeste, melhor que este aqui de baixo. De igual modo, os espíritos malignos que vivem em lugares celestes (cf. Ef 6,12), têm cidadania na terra. Eles armam ciladas para os homens, contra os quais estão em luta, “acumulam tesouros na terra” (Mt 6,19) e trazem em si “a imagem do terrestre” (1 Cor 15,44), que é primeiro na criação do Senhor, criada para escárnio desses anjos. Tais espíritos não são celestes nem habitam em lugares celestes, por sua má disposição. Quando, pois, se diz: “Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu”, não se deve crer que esses espíritos estão no céu, mas que por causa da sua soberba, caíram com “aquele que caiu do céu como um raio” (Lc 10,18).
6 Quando o nosso Salvador diz que devemos orar para que se faça a vontade do Pai na terra como no céu, não está mandando somente orar para que sejam como os do céu os que estão em um lugar na terra.
Em verdade, manda orar porque deseja que tudo que há na “terra”, isto é, as coisas mais baixas, se tornem como as mais nobres, que têm a sua “cidadania no céu” (Fl 3,20), já transformadas em celestes. Porque o pecador é “terra”, onde quer que se encontre, e terreno será, se não se arrepende (cf. Gn 3,19), mas aquele que faz a vontade de Deus e não despreza as suas leis espirituais e salutares é “céu”. Se, pois, somos “terra” pelo pecado, oremos para que a vontade de Deus também nos predisponha ao arrependimento, como transformou em céu os que nos antecederam e agora são “céu”.
E se o Senhor nos reconhece não como “terra”, mas já como “céu”, pecamos que a vontade de Deus chegue à plenitude na terra como no céu.
Quero dizer que aqueles que estão em baixo se transformem de “terra” em “céu”, por assim dizer, de maneira que não sejam mais terrenos, mas celestes.
Porque se a vontade de Deus se faz na terra como no céu, entendido como eu disse, então a terra já não é mais terra. Di-lo-ei mais claramente, através de um exemplo. Se a vontade de Deus se faz num coração puro e num impuro, o impuro se tornará puro de coração. E se a vontade de Deus se cumpre nos justos e nos injustos, os injustos se tornarão justos. Por isso, se fizermos a vontade de Deus na “terra” como no “céu”, todos viremos a ser “céu”.
A carne de nada vale para herdar o céu, nem o seu aliado, o sangue (cf. Jo 6,63; 1 Cor 6, 9-10). Mas serão escolhidos para herdá-lo, se transformarem-se de carne, terra, pó e sangue em substância celeste.