Pascoa de Cristo

A PÁSCOA DE CRISTO

A Páscoa de Cristo cumpriu-se no tempo. Cristo veio até nós e depois subiu para o Pai. Veio em missão comercial fazer uma permuta. Não se estranhe nem a idéia nem a palavra, que ambas se encontram na pregação de Agostinho, onde é muito nítido e muitas vezes retomado o desenvolvimento de tal simbolismo. E é curioso que este tema da troca de bens e da permuta de mercancias alcance nele muito maior desenvolvimento (se nos ativermos só aos sermões que estamos estudando) do que a missão de salvador ou mesmo o ofício de redentor. E assim, ao lado das imagens tradicionais de Christus salvator (Cristo salvador) que nos liberta, ou de Christus redemptor (Cristo redentor) que paga as nossas dívidas, perfilam-se, como em sobre-impressão aos de Christus medicus (Cristo médico) que nos cura, os traços originais e bem desenhados de Christus mercator (Cristo mercador), que veio ao meio dos homens para receber a morte que comprara, dando, como preço dela, a vida.

Tal missão exige uma viagem e a passagem de uma fronteira: «Vindo da sua pátria …» (S 233, 4); «Nosso Senhor veio, pois, de outro país para esta terra … para a região da morte, veio da região da vida; para a região do sofrimento, veio do país da felicidade» (S Guelf. 9, 1). Mercator iste (este mercador) (S 233, 4): é sabido que a língua pós-clássica confunde os significados de duas palavras distintas, mercator (mercador), o comerciante, mesmo que seja modesto merceeiro ou tendeiro, e negotiator (negociante), o importador. O mercator que aqui figura é, antes, o homem de negócios, cujas transações o levam a terras longínquas, a regiões bárbaras. Não esqueçamos que Hipona era um porto, a Numídia uma marca ou fronteira do mundo romano. Para além dela, fica o deserto onde as caravanas a princípio encontram apenas desolação e sede. É o que sucede ao nosso mercador: «Este mercador encontrou na nossa região o que nela abunda. Que abunda aqui? Nascimento e morte. Nascer e morrer são as mercadorias que enchem a terra.» (S Guelf. 9, 1; S 231, 5).

Contudo, nesta região de tristeza, entabulou relações de hospitalidade, como todo o viajante de antanho: «Comeu contigo o que abunda na pobre casa da tua miséria. Bebeu cá vinho azedo, bebeu cá fel, o que encontrou na tua pobre casa; mas em compensação convidou-te à sua lauta mesa do céu» (S 231, 5).

As compras pagam-se em espécie, segundo o sistema da permuta. Por uma mercancia para ele totalmente exótica, a morte, dá o que faz absoluta falta nesta nossa região, a vida: «Porque para Ele, que é o Verbo, donde é que lhe viria a morte? E a nós, homens da terra, mortais, corruptíveis, donde é que nos viria a vida? Ele não tinha nada donde pudesse tomar a morte, nós não tínhamos nada donde pudéssemos tomar a vida; do nosso haver recebeu a morte, para, do seu, nos dar a vida» (S 232, 5).

«O nosso mercador ao vir da sua pátria trouxe para cá um valor de importância» (S 233, 4). «Porque ressuscitar e viver para sempre, quem conhecia tal coisa? Esta é a novidade que Ele trouxe à nossa terra» (S Guelf. 12, 1). «Veio, trazendo-nos consigo os seus bens, e trazia-os sem se saber» (S Guelf. 9, 1). «Fez conosco um extraordinário comércio: nós tínhamos aquilo por que Ele morreu, Ele tinha aquilo por que nós vivemos» (S Guelf. 3, 1).

O S Denis 5 (que talvez não seja autêntico) diz ainda mais familiarmente: «Façamos uma troca: eu dou-te a ti, tu dás-me a mim. Eu tomo de ti a morte, tu toma de mim a vida.»

Que transações destas não enriqueciam o seu autor, era informação que Agostinho recolhera de S. Paulo (II Cor 8, 9) e apresentava desta maneira: «Diz-te Deus: Por causa de ti fiz o meu Filho pobre. Realmente, por causa de nós é que Cristo, de rico que era, se fez pobre» (S 239, 6). Diz ainda: Magna mutatio! Ille factus caro, isti spiritus (Grande mudança! Ele feito carne, estes (feitos) espírito; S 121, 5).

Era tão incrível o lindo e rico negócio, que o mercador teve que deixar fiança. «Não quereis acreditar que vos darei a minha vida? Tomai por fiança a minha morte» (S 231, 5). «Como é que pode recusar-nos a sua vida, se nos pagou antecipadamente a sua morte?» (S 233, 4). Às vezes até compra os próprios fiéis (idéia que no mundo antigo nada tinha de estranho): Quando jacuit tunc nos emit (Quando morreu então nos comprou; S Guelf. 1, 5). «No momento da venda não escondeu o que comprou. Fez a escritura. Graças a Deus não nos enganou» (In Io. Eu. 13, 4).

É de ver que o tema está perto, mas muito diferente do de redemptor (redentor) que resgata da escravidão por dívidas, que rasga a cédula (o chirographum) e faz sair da prisão. Tal é a aventura do mercador-viajante, do estrangeiro que passa, peregrinus in mundo (peregrino no mundo; S 239, 2).

A passagem de Cristo depende de outra razão. Os homens estão doentes. Depois das andanças do mercador, a visita do médico: Venit medicus tunc … Medicus Christus (veio então o médico … O médico é Cristo)… Desta vez o simbolismo funda-se mais explicitamente nos textos da Escritura: Mc 2, 17 e 5, 31-32, que Agostinho não cita, exceto no S Bibl. Casin. II, 114, onde os versículos são a base e fundamento da pregação. É um sermão de circunstância. Pouco antes da Quaresma animam-se os catecúmenos a dar o nome para o batismo: «Cristo ama os pecadores, como o médico ama o doente, para lhe matar a febre e o salvar. Não quer que o doente esteja sempre enfermo para ter de sempre o visitar, mas quer curá-lo … Portanto, o melhor dos médicos, para quem nenhuma doença é incurável, começou a tratar-te. Não tenhas medo dos crimes passados que porventura tenhas cometido, por monstruosos, por incríveis que sejam; são grandes as tuas doenças, mas é maior o teu médico» (S Bibl. Casin. II, 114, 1, 2).

Na literatura patrística, encontra-se noutros autores este mesmo tema. Em S.9 Agostinho, este melhor dos médicos, optimus medicus, medicus artifex. (médico óptimo, médico artista; S Guelf. 17) é também medicus humilis (médico humilde); S Mai 22). É o mesmo que dizer que cura da presunção e que desempenha seu papel na polêmica antipelagiana. Pedro precisa de um diagnóstico que lhe revele a sua natural fraqueza, de um tratamento que lhe dê forças novas.

É, porém, secundário este aspecto da missão de médico, tal qual ela é vista à luz da pregação pascal. Como o tema do mercador, o do médico cobre-se de uma coloração sobriamente patética, pois um vem dar a vida em troca da morte, e o outro (que é o mesmo) vem curar as feridas com o contacto das suas cicatrizes. «Cristo podia ter curado as chagas do seu corpo de modo que nem rastos se vissem das cicatrizes, mas quis guardar as cicatrizes na sua carne para arrancar do coração dos homens a chaga da incredulidade, curar as chagas verdadeiras pelo sinal das suas próprias chagas» (S Mai 95, 2). «O médico não os deixou partir assim, aproximou-se, deu-lhes um remédio, via as chagas que tinham no coração e, para lhes curar a chaga do coração, levava em seu corpo as cicatrizes.» (S 237, 3).

Este gênero de desenvolvimento funda-se talvez no texto de S. Pedro (I Pe 2, 24) em que é citado Isaías 53, 5: cujus livore sanati estis (com cujo livor fostes sarados). Não parece que Agostinho o tenha citado. Cristo não cessa de passar entre os homens para os curar e salvar. Nesta páscoa misteriosa, em que Ele está na terra e no céu, junto deles e junto do Pai, vê-se como se vai esclarecendo a natureza da sua páscoa histórica, a sua função de mediator (mediador): «Fez-se filho do homem sem deixar de ser filho de Deus. Para isto é medianeiro no meio. Que quer dizer: no meio? Nem em cima nem em baixo. Como nem em cima nem em baixo? Nem em cima porque é carne, nem em baixo porque não é pecador. Contudo, enquanto Deus, sempre em cima; porque não veio a nós de tal maneira que deixasse o Pai. Partiu do meio de nós e não nos deixou, há de vir a nós sem O deixar.» (S 121, 5).

Veio, pois, ao meio dos homens para lhes dar o que os cristãos chamam a salvação. A palavra latina é certamente muito mais rica de sentido, porque é muito mais concreta. Salus é primeiramente a saúde, é também aquilo que a assegura e conserva. A fonte desta saúde que nos faz viver é Deus. A páscoa de Cristo vem transformar uma saúde transitória, uma vida efêmera, que nos é comum com os animais (c/. o comentário ao Sl 35, 10, no S 233), numa saúde que não passa (quae non transit). É o que se afirma no S 116, 1: «A nossa saúde é Cristo»; o S 233, 4 dá de mão finalmente ao intermédio de toda a imagem: Ipsa salus hic venit… (Veio aqui a Saúde em pessoa …).

Nestas solenidades da Páscoa, em que se faz a iniciação baptismal, é natural que se retome, com o versículo 10 do Sl 35 o simbolismo que penetra e embebe todas as Escrituras, desde o Gênesis a S. João: Christus est fons vitae (S 232, 2), Venit ipse fons vitae (veio a própria fonte da vida; S Wilm. 11). A imagem familiar às primeiras gerações cristãs, ficou sempre muito do gosto de S. Agostinho.

Tal é a Páscoa de Cristo.