Martins Horto II

Horto do Esposo — MARIO MARTINS

Como escapar a este doloroso fluir das coisas amadas? Temos uma saída drástica: Destemporalizar-nos! Pensar, amar e realizar a nossa eternidade. Desenraizar-nos deste mundo e caminhar internamente para Deus e para o que não muda, seguindo a nossa vocação essencial de peregrinos, de caminhantes.

E aqui surge a função espiritual da dor, essa mão implacável que nos arranca do mundo e das coisas. Bem-aventurados os cegos, os surdos, os infelizes, porque Deus os livrou das sombras enganadoras e das sereias malévolas!

Resumimos as ideias-forças destas páginas, sem pormos em foco o que nelas há de indevidamente parcial. Expomos um modo de interpretar a vida e o tempo, não o criticamos. Contudo, devemos notar que tal mundividência está certa ao expulsar da nossa consciência a noção cômoda do repouso absoluto.

Vamos agora desenvolver o que podemos classificar de «teoria da relatividade existencial» como norma de avaliação: Uma coisa existe (e, por conseguinte, vale) conforme o ponto de vista do observador e o ponto de relação a que ele a refere.

Referidas ao infinito, as coisas deste mundo mais não existem do que existem, pois nelas a extensão da não-existência excede muito a da existência positiva. Em comparação de todo o mar, uma gota de água significa uma quantidade despicienda e dizemos: Isso não vale nada! E em relação à ânsia de Absoluto que nos atormenta, também nada vale tudo o que temos, por exemplo a glória terrestre.

O tema da glória aparece bastante documentado por Maria Rosa Lida de Malkiel, em La Idea de la Fama en la Edad Media Castellana, um estudo que arranca de Homero, percorre os escritores do mundo antigo e se prolonga principalmente pela Idade Média espanhola, acabando no Condestável D. Pedro e em Jorge Manrique. A favor ou contra a glória deste mundo, a ânsia é a mesma e igual o tormento: não morrer de todo!

Tal glória, observa o Horto do Esposo, consiste na lembrança de alguém no louvor dos homens. Expande-se no espaço e no tempo. Ser admirado em toda a parte e sempre, eis o nosso desejo íntimo.

Porém, a terra he pequena toda”. Além disso, os homens habitam somente uma pequena parte dela, aliás com desertos, mares e lagoas onde ninguém vive. E mesmo na parte habitada, nunca a fama de homem algum a enche toda. São desvayradas as línguas, diversos os costumes dos povos, louvando-se num lugar o que noutro se desconhece ou se reprova. Torna-se, pois, impossível à fama espalhar-se pelo mundo habitado. E ainda que a nossa glória fosse dum cabo ao outro da Terra, pouca importância teria. Com efeito, a Terra é tão pequena, segundo os astrônomos, que não passa dum ponto, em comparação do Universo estrelado.

E aqui temos a glória do homem reduzida a um ponto perdido na amplidão dos céus.

Perdida no espaço, fica também limitada no tempo, porque «a fama dura muy pouco ou nada, ê respeyto da eternidade». E mesmo no mundo, morre depressa a glória, pois depende dos homens inconstantes. Por fim, chega a morte triste e salgada e tudo perde o sabor, porque ela despreza a alta glória do mudo, nivela tudo e todos.

Onde estão os ossos de Fabrício, cônsul de Roma, que é feito de Bruto e de Catão? Consumiu-os a terra. A glória já não lhes pertence nem lhes aproveita, pois não desceu com eles à sepultura. E ainda que descesse, nada valeria no outro mundo, onde há maiores coisas do que tal fama e onde eles, libertos do carcer terreal, também a desprezariam.

A morte dá-nos a medida justa das coisas. Marcados por ela, nada valem as dignidades e o poderio terreal, porque passam depressa. Breve e pequena he a vida de todo o poderio. A vida humana é vapor efêmero e a glória da carne assemelha-se às flores do feno: mal enverdecem, caem; erguem-se e são levadas. Como a palha que o vento levanta e o fumo que sobe, tal é o homem e o seu poderio. Assim como o orvalho que logo seca e as bolhas de espuma que «crecem pera aparecer e, ê crecendo, se acabam e desfalecem», assim morre o poder dos homens. Por isso dizia Boécio que as dignidades se assemelham às sombras que trespassam tostemente.

Ilusório e pequeno é o poder humano. E os senhores do mundo e das honras não se tornam melhores por causa delas. Tudo o que nos parece belo pouco vale, em comparação dos bens perduráveis que encerram «dulçura grande e verdadeyra».

Assim, as coisas transitórias degradam-se a sombras vãs, quase inexistentes. E porquê? Torna a responder o Horto do Esposo, desta vez a propósito da brevidade e pequenez das forças corporais: o pouco têpo he como nimi-galha, pois em todo poderio mortal o pouco he contado por nada e, como tal, deve ser desprezado.

A aplicação do que chamámos «teoria da relatividade existencial», como norma de avaliação, supõe a idéia dominante do Absoluto e do eterno e supõe igualmente a consciência do fluir do tempo, impregnado pela morte: o tenpo nõ queda de andar. Na melhor das hipóteses, vem a velhice e em breve morreremos.

A vivência da morte (permitam-nos o paradoxo) e do tempo a escoar-se domina estas páginas de aparência pessimista e que poderíamos intitular, em latim, de contemptu mundi. Tomar consciência da morte e do tempo eqüivale a tomar consciência dum mundo povoado por quase-sombras. Homens e animais, da terra nascem e em terra se tornam. Eles, os homens, deixam-se enganar pelos bens passageiros, pensando que são autênticos. Porém, não passam de sombras e imagens dum espelho. Deste modo, somos «êganados pella soõbra, ca tal he o homê como a soõbra» fugitiva e a flor que murcha.

Folha arrebatada pelo vento, fumo que pouco dura, o corpo tem o estigma da sua origem, o pó, e do seu fim, o pó.

Em suma, tudo é provisório para nós, nesta vida. Pegar e largar, largar e partir. Não vale a pena enfeitar as mesas com toalhas bordadas, facas com cabos de marfim, taças douradas, escudelas, talhadores e saleiros de prata. Não aproveita pintar os compartimentos das casas, alisar fremosamente os portaaes, atapetar o chão, compor o leito fofo de penas, cobri-lo de colchas de seda e cercá-lo de cortinas, pois está escrito que o homem, ao morrer, nada levará da glória da sua casa. E por isso, «sandeu he o homê pilingrim e estranho que, fora de sua terra, se trabalha e toma cuydado de aver morada sollepne cõ pinturas e con outros afeytamêtos notavees».

Peregrinos e estranhos, nós todos estamos de viagem, a caminho da morte, pois é só um o fim de todos e a terra é mãe e sepultura dos homens. Saímos nus do ventre materno e nus voltaremos à terra.

Onde estão os grandes letrados, os homens que davam festas, os corredores dos cavalos fremossos, os condutores de exércitos e os sábios? Servos e senhores, fortes e fracos, bonitos e feios, não se distinguem agora uns dos outros e a morte igualou-os.

Morre o prazer, morre o corpo e apodrece. As riquezas não irão connosco. Por conseguinte, nada disso era verdadeiramente nosso. Não temos, a sério, o que deixaremos de ter, pois tal posse é outra ilusão.

Estamos perante uma filosofia de desenraizamento e desapego, a restituir-nos à dura realidade de exilados, em busca do paraíso-por-achar.