De Libero Arbitrio, III, 16, BA 6, 410. Voir aussi : « Neque omnino potuit nisi Deus omnipotens esse talium creator animarum, quas et non dilectus faciat, et diligens eas reficiat, et dilectus ipse perficiet ; qui et non existentibus praestat ut sint. – Absolument personne, hors Dieu tout-puissant, ne pouvait être le créateur d’âmes telles qu’il les fasse alors qu’il n’en était pas aimé, qu’il les refasse en les aimant et qu’il les ait parfaites en en étant aimé ; lui qui donne d’être même à ce qui n’existe pas [encore] » (III, 20, 56, ibid., 430). En Confessiones, VII, 21, 27, le verset de 1 Corinthiens, 4, 17 devient un argument de théorie de la connaissance : « Et coepi et inveni, quidquid illac verum legeram, hac cum commendatione gratiae tuae dici, ut qui videt non “sic glorietur, quasi non acceperit” non solum id quod videt, sed etiam ut videat – “Quid enim habes quod non accepit ?” – Et je commençais à trouver que tout ce que je lisais de vrai là [chez les Platoniciens] se trouvait ici [dans les Écritures] avec la caution de ta grâce, en sorte que celui qui voit ne “se glorifie pas comme s’il n’avait pas reçu” non seulement ce qu’il voit, mais aussi le fait même de voir – “Que n’as-tu que tu n’aies reçu ?” » (13, 638).
Se eu me descubro assim tão essencialmente agraciado, dom dado antes mesmo que alguém pudesse recebê-lo (e especialmente ele mesmo), esse paradoxo resulta do paradoxo do dom absoluto em Deus e responde a ele. Pois, seguindo uma análise radical de Santo Agostinho, Deus, na pessoa do Espírito, se define de modo tão absoluto como e pelo dom, que ele nem mesmo precisa se tornar, por assim dizer, dado (datum, donatum) e, portanto, recebido para já se realizar desde o início e para sempre como dom (donum), uma vez que ele já se encontra como tal e por definição dado, mesmo quando ainda não havia ninguém para recebê-lo: «An eo ipso quo daturus erat eum [Spiritum sanctum] Deus, jam donum erat et antequam daretur. […] An semper procedit Spiritus Sanctus, et non ex tempore, sed ab aeternitate procedit ; sed quia sic procedebat ut esset donabile, jam donum non erat, et antequam esset cui daretur ? Aliter enim intelligitur cum dicitur donum, aliter cum dicitur donatum. Nam donum esse potest et antequam detur. – A menos que o Espírito Santo proceda sempre, não no tempo, mas desde [toda] a eternidade; mas, se ele procedia de tal modo que fosse agraciável, não era já um dom, mesmo antes que houvesse alguém a quem doá-lo? Pois é preciso entender de um modo o dom, e de outro o dom dado. Pois pode haver um dom antes mesmo que ele seja dado.» Em outras palavras: «In tantum ergo donum Dei [Spiritus Sanctus] est, in quantum datur eis quibus datur. Apud se autem Deus est, etsi nemini detur, quia Deus erat Patri et Filio coaeternus antequam cuiquam daretur. – Mas para si mesmo ele é Deus, mesmo que não seja dado a ninguém [fora de Deus], porque ele era Deus coeterno ao Pai e ao Filho antes de se dar a qualquer um.» 1 Da mesma forma, e porque Deus se atesta sempre já como um dom doador e doador sem a menor condição, mesmo a de sua recepção por algum donatário fora de Deus (e que, em todos os casos, por definição, nunca poderia recebê-lo como e tanto quanto ele se dá – ou seja, de um excesso sem medida); da mesma forma e, consequentemente, eu me encontro, eu mesmo, sempre já dado (agraciado e donatário de mim mesmo), antes mesmo de ter recebido o poder de receber. Eu tenho originalmente o estatuto de agraciado, dado a mim mesmo antes de poder receber até mesmo meu próprio si. No lugar de si, eu recebo de me receber de outro lugar que não eu mesmo. A aporia do si mesmo, portanto, nunca desaparece – ela é recebida como o horizonte de meu avanço em direção ao imemorial.
(Jean-Luc Marion, MarionSoi)
- De Trinitate, respectivement V, 15, 16, 15, 460 sq., et XV, 19, 36, 16, 522.[↩]