EVA — SERPENTE — MAÇÃ
VIDE: Jardim do Éden; Adão
Cabala
Paul Nothomb: Ça ou l’histoire de la pomme racontée aux adultes
A serpente do Paraíso é introduzida no relato sem outro preâmbulo que seu qualificativo, idêntico àquele atribuído no versículo precedente ao casal híbrido (Outro). Astuta, maliciosa (aroum em hebreu). Como o Adão e sua mulher “fazia malícia” (v. Outro), se cria astuciosa em suas adivinhações. Seu nove significa “adivinhar”. Ela não figura o espírito do mal. Mas o espírito lógico dos membros do casal, mutilado como ele. Pois se sempre estão no jardim, seu entendimento está reduzido àquele do “animal” que Adão se tornou (Gn 2,7), superior àquele dos “animais dos campos” quantitativamente mas não qualitativamente. Se crê maliciosa em se dirigindo à mulher e em lhe pondo uma questão armadilha, pois em hebreu pelo menos ela é equívoca. “Deus bem disse: Não comereis de toda árvore do jardim? “ É verdadeiro e é falso segundo se compreender “toda” (em hebreu kol) como “alguma” ou “cada uma”.
Mas a mulher joga a armadilha linguística (de novo a importância da linguagem no “Zoot” que recomeça). Considerando que, na leitura tradicional, a mulher ainda não existia quando Deus tinha posto Adão (da qual ela fazia parte integrante) em guarda contra a confusão das árvores Árvores do Paraíso ela responde enquanto testemunha direta das palavras pronunciadas e aí adita mesmo uma que reforça a diferença: “Aí não tocareis” e não somente “dela não comereis” tratando-se da Árvore do Conhecimento. É capital. A Árvore do Conhecimento, contrariamente a todas as outras, deve ser conservada intacta e “comer dela” seria amputá-la. É verdade que a mulher é a única a falar dos frutos das Árvores do Paraíso, enquanto não é esta a questão no aviso divino. Os frutos (em hebreu “fruto” é um nome coletivo) são uma invenção ou uma interpretação da mulher. É talvez sua desculpa (de novo a importância da linguagem), a desculpa de sua distração pois ela bem reteve “aí não tocareis”, o que exclui toda colheita.
A serpente que fala, se mantém de pé e “faz malícia” tem todas as aparências de uma pessoa, ,as dela não representa senão uma função, como nas caricaturas. Aqui a função intelectual do indivíduo que sucedeu à criatura, e que não tem seu lugar no Éden, mas aí permanece paradoxalmente sem dúvida por necessidade da demonstração discursiva. Trata-se de indicar que nada é definitivo nem sobretudo fatal no Éden, que se pode sempre aí voltar atrás, que o tempo aí é cíclico e não irreversível como na condição humana. Pois a cena célebre que vai seguir é uma mise-en-scène, mas bem sucedida que a precedente, que pretendia descrever a auto-degradação de Adão, ainda em suspenso. Ela se desdobra não mais na cabe;ca de Adão, o segundo dos sois, que não está anestesiado, mas bucolicamente ao redor de uma árvore, mesmo se não é de modo algum uma macieira no texto.
Contrastando com a circunspecção da mulher, a situando sem a nomear no meio (ou no interior) do jardim, a serpente sem também a nomear responde com vivacidade que o tocar ou o comer não é perigoso, ao contrário. “Não morrereis de todo!” afirma com uma certeza de adivinho pouco seguro dele e que adicionam como para se convencer ele mesmo. “Pois Deus sabe que o dia que dela comeres (quer dizer, a amputar, pois não é questão na boca da serpente de “fruto” como naquela da mulher (mas da árvore ela mesma) vossos olhos se abrirão e sereis oniscientes como Deus” (Gn 3, 3-5).
Aí a serpente prefigura todos os teólogos do mundo. Sabe o que “Deus sabe” com segurança. E o que Deus sabe segundo ela é que os olhos do casal se abrirão e que eles “saberão de tudo” como Deus. Ora Deus, segundo o texto, não sabe nem mesmo neste momento o que se passa…
Para o leitor que conhece o fim da estória e se lembra do “morrerás certamente!” acenado a Adão antes do “Isto”, nenhuma dúvida. É Deus que diz a verdade e a serpente mente. Todo o relato é construído sobre esta antítese. Mas para a mulher, que não conhece o fim da estória, entre “o medo que morrereis” que ela reporta, parece, de memória e o “não morrereis absolutamente” que ela ouve, a oposição é clara. É o último que fala que tem razão? Ela hesita. Ela dirá mais tarde que a serpente a seduziu, mas no momento, no texto, ela se decide sobre impressões pouco fundadas. “E a Mulher viu que a árvore (era) boa a comer e uma delícia para os olhos, e agradável para desenvolver a inteligência, ela tomou seu fruto e comeu e deu também a seu companheiro com ela e ele comeu” (Gn 3,6).
Grandes efeitos mas, parece, pequena causa. Como, sobre um único aspecto, saber que alguma coisa de que jamais saboreamos é comestível, e mais ainda apta a desenvolver a inteligência? Além do mais é da árvore que ela diz isso, mas é do “fruto” que ela é sempre a única a “ver”, que ela toma e dá a seu companheiro, eloquentemente mudo, que não mais que ela a princípio, segundo o texto, dela não come. Os dois “comem”, mas o que? Nem um nem outro em realidade não parecem ter efetivamente “mastigado a maçã”. É de um simples simulacro que eles vão ser e nós seus descendentes com eles, punidos para sempre e desta vez sem sursis?
VIDE: Abriram-se os Olhos