Radicalmente outro é o homem se o acesso ao que constitui seu ser essencial, se seu próprio acesso a si mesmo reside na Vida invisível e somente nela. Pois o acesso do homem a si mesmo é sua própria essência, sua relação consigo, seu Si. Como o homem tem acesso a [364] si mesmo, como se relaciona consigo mesmo de modo que possa ser um Si, é o que diz a teoria do Filho – do Filho da Vida na medida em que não há Filho senão nela. É enquanto a vida se dá a si na Ipseidade original de um Primeiro Si e nesta somente que cada Si é dado a ele mesmo de maneira a tornar-se este Si que ele é, o Si de todo eu e de todo ego concebível. Ora, é somente como este Si, como este eu ou como este ego que algo como um “homem” é possível. Não é preciso pois dizer somente como acabamos de fazer: outro é o homem se o acesso a seu ser essencial, se seu próprio acesso a si mesmo se fizesse no mundo, no conhecimento, no pensamento e notadamente no pensamento científico moderno saído da revolução galileana e no campo aberto por esta ciência. No campo aberto pela ciência galileana, há corpos materiais, partículas microfísicas, moléculas, cadeias de ácidos, neurônios, etc., mas nenhum Si. No campo aberto pela ciência moderna, não há nenhum homem. Longe de a transformação do conhecimento resultante da emergência do saber inteiramente novo da ciência moderna poder transformar ao mesmo tempo ou ao menos modificar nossa ideia de homem, o que constitui o ser-essencial deste, ela o suprime pura e simplesmente. Quanto ao saber obsoleto do cristianismo, um saber que data de dois milênios, não são dados inteiramente prescritos e inutilizáveis sobre o homem o que ele nos fornece: somente ele pode dizer-nos hoje, no meio da confusão mental generalizada, o que é o homem.
Que o homem que não é possível senão como um Si e, assim, como um eu e como um ego não seja possível ao mesmo tempo senão ali onde advém algo como um Si, é disso que dá conta, com efeito, de modo rigoroso, a teoria cristã do Filho. Que o homem seja Filho de Deus, Filho da Vida absoluta, não quer dizer, com efeito, senão isto: é no próprio movimento pelo qual a vida se dá a si no processo de sua autorrevelação eterna que nasce a Ipseidade em que todo Si concebível é dado a ele como este Si que ele é. É tal processo que constitui o nascimento transcendental do homem em Deus, enquanto seu Filho, na medida em que o homem traz um Si [365] em si e não é possível senão a este título. Por isso o homem não é possível senão enquanto Filho de Deus, por isso não há homem – de Si – senão engendrado nele e por ele, nesse processo de autodoação da Vida que é identicamente o de sua autorrevelação – que é a Revelação de Deus.
Mas, se o homem não é possível senão enquanto é um Si, e se este Si não é possível por sua vez senão engendrado no processo da Vida absoluta de Deus, segue-se a consequência decisiva de que a negação de Deus é identicamente a do homem. É esta dupla negação que o mundo moderno coloca constantemente sob nossos olhos, e é assim que ele se descobre como um mundo profundamente anticristão e, ao mesmo tempo, radicalmente estranho ao homem. (Michel Henry MHSV)