Do ponto de vista de São Tomás, o trabalho de Gilson é especialmente pertinente, pois ele defende a tese tomista sobre o ser historicamente. Com uma rara combinação de erudição histórica e insight filosófico (FS2 194), Gilson interpreta a história da metafísica como uma série de concepções mais ou menos distorcidas do que o ser significa, de várias tentativas de substituir algo diferente do ser por ser. Repetidamente, Gilson pensa, os metafísicos sucumbem à inclinação de reduzir o ser às proporções da razão conceitual. A história da metafísica é uma tentativa sustentada de tornar o ser algo concebível e definível. No platonismo, o ser é reduzido à unidade e, no aristotelismo, à substância; e na longa tradição de Avicena a Hegel, o ser se torna essência. É apenas em Tomás que o ser é tomado precisamente como ser, em toda a sua primordialidade como ser. Somente Tomás tem a tenacidade de permanecer puramente no “elemento do ser”, como Heidegger disse uma vez (Weg. 316/196), e de pensar o ser em termos do ato existencial que é esse, a actualitas omnium rerum, o perfectissimum omnium (ST, I, 4, l, ad 3).
No entanto, é exatamente isso que Heidegger mantém sobre o “pensamento do ser”. O que significa ser, diz Heidegger, caiu em negligência ou esquecimento (Seinsvergessenheit), precisamente porque a diferença entre ser e entes foi ocultada. O ser é em toda parte reduzido às proporções de algo sedutor, de um ente ou outro. Na metafísica, o ser é considerado como ουσία, Gegenstand, Begriff, Wille e também como actus, actualitas. Em todo caso, o próprio ser é caracterizado em termos de uma região de seres. Somente o pensamento do ser (Seinsdenken) praticado por Heidegger resiste a essa tendência e medita o ser tão simples quanto a pura emergência na presença pela qual o ser se mostra de si mesmo.
Mas como se pode incluir a metafísica de esse na história de um esquecimento do ser? Que sentido possível pode haver ao se falar de uma filosofia cujo foco é todo o ato-de-ser existencial, o próprio ato em virtude do qual uma coisa é ao invés de não ser, como algo esquecido do ser? É difícil imaginar o esquecimento aqui, onde tudo se volta para a doutrina do esse. De fato, no cume desta doutrina está a noção de Deus, não como “um” ser, mas como um Ser subsistente, ipsum esse subsistens. Longe de esquecer o ser, tudo na metafísica existencial está focado nele.
Agora, é minha opinião que uma metafísica “existencial” no sentido tomístico, no sentido de uma filosofia que dá primazia ao ato da existência, não fica fora do escopo do que Heidegger quer dizer com o esquecimento do ser, que o “essencialismo” criticado por Gilson e o “esquecimento do ser” não são os mesmos. Não importa qual princípio ganhe a primazia, a compreensão do ser em termos de essência e existência pertence ao esquecimento no sentido heideggeriano. Não se pode extrair a metafísica de São Tomás dessa acusação, na minha opinião não se alguém domina o significado totalmente radical da crítica de Heidegger, não se alguém vai fundo no entendimento do que ele quer dizer. A resposta usual à crítica de Heidegger, feita pelos seguidores de São Tomás, me parece muito fácil; subestima a radicalidade das críticas de Heidegger.
Pois, à medida que seu pensamento se desenvolvia, Heidegger deixou de dizer que o problema da metafísica é que ela se preocupa com os entes, negligenciando o ser. Essa é uma maneira enganosa de colocar isso, que não chega ao cerne da questão. Pois Heidegger finalmente chegou à conclusão de que a palavra “ser” pertence aos metafísicos e que não podia mais servir ao que ele queria pensar, para que o assunto genuíno fosse pensado. “Ser” tem sido objeto de todo relato metafísico ou, como ele diz, “ontológico” de entes, de Platão a Nietzsche. A verdadeira preocupação do pensamento não é o ser dos metafísicos, mas o que concede o ser como objeto da metafísica. Não é a distinção entre ser e entes que diz respeito a Heidegger, mas a que abre essa distinção em toda e qualquer época metafísica. Toda metafísica se move dentro da distinção entre ser e entes, e em cada caso o ser é pensado como algum tipo de fundamento ou causa dos entes. Isto é claramente verdadeiro para a metafísica de São Tomás, centrada na distinção entre puro ser subsistente, esse subsistens e entes finitos, ens participatum. Os entes finitos participam e dependem do próprio ser, enquanto o ser, como ser subsistente que é Deus, se comunica com os entes.
Portanto, se não há esquecimento do “ser” aqui, há um esquecimento da di-ferença que abre a diferença entre ser e entes, entre esse e ens, dentro do qual Santo Tomás pensa. O assunto real a ser pensado, na visão de Heidegger, é essa diferença, que ele chama em alemão Unter-Schied (literalmente: a inter-seção), que concede a Tomás a possibilidade de pensar em termos de esse e ens. A questão a ser pensada também é chamada por Heidegger Ereignis, o Evento de Apropriação, o evento que envia o ser ao pensamento e torna possível a história da metafísica. Ereignis não significa ser, mas aquilo que concede o ser. Não dizemos que o ser “é”, mas que “há / es gibt” ser, e o Ereignis é o “Isso” que dá o ser ao pensamento. A história da metafísica é a história das várias maneiras pelas quais os metafísicos nomearam o ser, deixando o “Isso”, que dá ser, impensado. É a história de diversas dispensações do ser (Seinsgeschick), nas quais o ser é enviado enquanto o próprio Isso fica para trás.
O ponto essencial do ponto de vista de Heidegger não deve ser absorvido por nenhuma dessas dispensações épicas do ser, não deve ser submetido ao quadro metafísico que domina uma determinada época. O essencial é pensar no em se remetendo e não ser tomado pelo que é remetido, pensar no em se dando e não se perder no dado. Toda metafísica faz uso da diferença entre ser e entes, mas a metafísica nunca tematiza o diferenciação na diferença, aquele que abre a diferença. A metafísica pensa nos diferentes ser e entes, mas não n diferença enquanto tal. Platão pensa na diferença entre ειδος e indivíduo; Aristóteles, entre a primeira e a segunda ουσία; Tomás, entre esse subsistens e ens participatum. Mas nenhum desses pensadores que estão na luz dentro da qual a metafísica ocorre pensa a concessão desta luz, pensa a clareira, o próprio processo luminoso por meio do qual a diferença ontológica entre ser e entes é iluminada.gisl