EVANGELHO DE NICODEMUS
DESCIDA DE CRISTO AO INFERNO
Versão grega
Dois textos apócrifos constituem o Evangelho de Nicodemus: Atos de Pilatos e Descida de Cristo ao Inferno. Em é sequência do outro e o completa, embora escritos em épocas diferentes. Justino, em 150, menciona em seus escritos um texto chamado Atos de Pôncio Pilatos, narrando os acontecimentos posteriores à Crucificação.
Então José disse: “E por que vos admirai de que Jesus tenha ressuscitado? O admirável não é isto; o admirável é que não somente ele ressuscitou, como também devolveu a vida a um grande número de mortos, que há muito não são vistos em Jerusalém. E se não conheceis os outros, conheceis sim, pelo menos, Simeão, aquele que tomou Jesus nos braços, assim como também seus dois filhos, que igualmente foram ressuscitados. Pois a esses, há pouco tempo, nós mesmos demos sepultura, e agora podem contemplar seus sepulcros abertos e vazios, e estão vivos e morando em Arimateia”. Enviaram, então, algumas pessoas e comprovaram que os sepulcros estavam abertos e vazios. José então disse: “Vamos a Arimateia e veremos se os encontramos”.
E levantando-se os pontífices Anás, Caifás, José, Nicodemus, Gamaliel, e outros em sua companhia, foram até Arimateia onde encontraram aqueles a quem José se havia referido. Fizeram, então, orações e abraçaram-se mutuamente. Depois regressaram a Jerusalém em sua companhia e os levaram até a sinagoga. E, ali postos, fecharam as portas, colocaram o Antigo Testamento dos judeus no cento e os pontífices disseram-lhes: “Queremos que jureis pelo Deus de Israel e por Adonai, para que assim digais a verdade, de como haveis ressuscitado e quem é aquele que vos tirou de entre os mortos”.
Quando os ressuscitados ouviram isto, fizeram sobre suas faces o sinal da cruz e disseram aos pontífices: “Dai-nos papel, tinta e pena”. Trouxeram-lhes e, sentando-se, escreveram da seguinte maneira:
Oh, Senhor Jesus Cristo, ressurreição e vida do mundo! Dai-nos a graça para fazermos
o relato da tua ressurreição e das maravilhas que fizeste no Inferno. Nós estávamos, então, no Inferno em companhia de todos os que haviam morrido desde o princípio. E na hora da meia-noite amanheceu naquelas trevas, algo assim como a luz do sol, e com o seu brilho fomos todos iluminados e pudemos ver-nos uns aos outros. E ao mesmo tempo o nosso pai Abraão, os patriarcas e profetas e todos em uníssono regozijaram-se e disseram entre si: “Esta luz provém de um grande resplendor”. Então o profeta Isaías, ali presente, disse: “Esta luz provém do Pai, do Filho e do Espírito Santo; sobre ela ou profetizei, quando ainda estava na terra, desta maneira: “Terra de Abulão e terra de Neftali, o povo que estava sumido nas trevas viu uma grande luz’.
Depois surgiu do meio um asceta do deserto, e os patriarcas perguntaram-lhe: “Quem sois?” Ele respondeu: “Eu sou João, o último dos profetas, aquele que preparou os caminhos do Filho de Deus e pregou a penitência ao povo para remissão dos pecados. O Filho de Deus veio ao meu encontro e, ao vê-lo de longe, disse ao povo: “Eis aqui o cordeiro de Deus, aquele que tira os pecados do mundo’. E com minha própria mão batizei-o no rio Jordão e vi o Espírito Santo em forma de pomba que descia sobre ele. E ouvi também a voz de Deus Pai, que assim dizia: “Este é meu Filho, o amado, o que me agrada’.
E por isso mesmo também enviou-me a vós para anunciar-vos a chegada do Filho de Deus unigênito a este lugar, a fim de que aquele que acreditar nele seja salvo, e quem não acreditar, seja condenado. Por isto recomendo a todos que, enquanto o virdes, adoreis somente a ele, porque esta é a única oportunidade de que dispondes para fazer penitência pelo culto que rendestes aos ídolos enquanto vivíeis no mundo vil de antes e pelos pecados que cometestes; isto já não poderá ser feito em outra ocasião.
Ao ouvir o primeiro a ser criado e pai de todos a instrução que João estava dando aos que se encontravam no inferno, disse Adão ao seu filho Seth: “Meu filho, quero que digas aos pais do gênero humano e aos profetas para onde eu o enviei quando caí no transe da morte”. Seth disse: “Profetas e patriarcas, escutai: meu pai Adão, a primeira das criaturas, caiu uma vez em perigo de morte e enviou-me para fazer orações a Deus muito próximo da porta do paraíso, para que me fizesse chegar por meio de um anjo até a árvore da misericórdia, de onde haveria de tomar do óleo, para com ele ungir meu pai para que assim ele pudesse recuperar-se de sua doença. Assim fiz. E, depois de fazer minha oração, um anjo do Senhor veio e disse-me: “Que pedes, Seth? Buscas o óleo que cura os doentes ou a árvore que o distila para a doença do teu pai? Isto não pode ser encontrado agora. Vai, pois, e diz ao teu pai que depois de cinco mil e quinhentos anos, a partir da criação do mundo, haverá de descer o Filho de Deus humanizado; Ele encarregar-se-á de ungi-lo com este óleo, e teu pai levantar-se-á; e, além disso, purificá-lo-á, tanto a ele quanto aos seus descendentes com água e com o Espírito Santo; e então, sim, ver-se-á curado de todas as doenças, porém, por agora, isto é impossível’.”
Os patriarcas e profetas que ouviram isto alegraram-se grandemente.
E, enquanto estavam todos se regozijando desta forma, Satanás, o herdeiro das trevas, veio e disse ao Inferno: “ó tu, devorador insaciável de todos, ouve minhas palavras: anda por aí um certo judeu, de nome Jesus, que chama-se a si mesmo Filho de Deus; mas, como é um homem puro, os judeus deram-lhe a morte na cruz, graças à nossa cooperação. Agora, então, que acaba de morrer, estejas preparado para que possamos colocá-lo aqui bem aprisionado; pois eu sei que não é mais do que um homem, e ouvi-o até dizer: “Minh’alma está triste por causa da morte’. Sabes, além disso, que ele me causou muitos danos no mundo enquanto vivia entre os mortais, pois aonde quer que eu encontrasse meus servos, ele os perseguia; e todos os homens que eu deixava mutilados, cegos, coxos, leprosos ou algo semelhante, ele os curava somente com sua palavra; até muitos deles para os quais eu já havia preparado sepultura, ele fazia reviver somente com sua palavra”.
Então disse o Inferno: “E é ele tão poderoso assim que pode fazer tais coisas somente com sua palavra? E, sendo ele assim, tu porventura te atreves a enfrentá-lo? Eu creio que diante de alguém como ele, ninguém poderá opor-se. E o que disseste tê-lo ouvido exclamar, expressando seu temor diante da morte, disse-o sem dúvida, para rir-se de ti e enganar-te, para poder desafiar-te com seu poder. E então, ai! ai de ti por toda a eternidade!” Ao que Satanás respondeu: “ó Inferno, devorador insaciável de todos! Sentiste tanto medo assim ao ouvir falar de nosso inimigo comum? Eu nunca lhe tive medo, e bem que aticei os judeus, e eles o crucificaram e deram-lhe de beber fel com vinagre. Prepara-te, então, para que quando venha possa subjugá-lo firmemente”.
O Inferno respondeu: “Herdeiro das trevas, filho da perdição, caluniador, acabas de dizer-me que ele fazia reviver somente com sua palavra a muitos dos que tu havia preparado para a sepultura; se, pois, ele livrou outros do sepulcro, como e com que forças nós seremos capazes de subjugá-lo? Há pouco tempo devorei um cadáver chamado Lázaro; porém, pouco depois, um dos vivos, somente com sua palavra, arrancou-o à força das minhas entranhas. E penso que ele é o mesmo ao qual tu te referes. Se, pois, viermos a recebê-lo aqui, tenho medo de que corramos perigo também com relação aos demais porque deves saber que vejo agitados todos os que devorei desde o princípio, e sinto dores na minha barriga. E Lázaro, aquele que me foi arrebatado anteriormente, não é um bom presságio, pois voou para longe de mim, não como um morto mas sim como uma águia: tão rapidamente arremessou-o fora da terra. Assim, pois, conjuro-te por tuas artes e pelas minhas, não o tragas aqui. Tenho para mim que o fato de ele ter-se apresentado em nossa mansão quer dizer que todos os mortos cometeram pecado. E considera que, pelas trevas que possuímos, se o trouxeres aqui, não me restará nem um só dos mortos”.
Enquanto Satanás e o Inferno diziam tais coisas entre si, produziu-se uma grande voz como um trovão, que dizia: “Elevai, ó príncipes, vossas portas; descerrai, ó portas eternas, e
o Rei da Glória entrará”. Quando o Inferno ouviu isto, disse a Satanás: “Sai, se és capaz, e enfrenta-o”. E Satanás saiu. Depois o Inferno disse para seus demônios: “Trancai bem e fortemente as portas de bronze e os ferrolhos de ferro; guardai minhas fechaduras e examinai tudo o que está em pé, pois, se aquele entrar aqui, ai! apoderar-se-á de nós”.
Os pais que ouviram isto começaram a fazer-lhe zombarias dizendo: “Comilão insaciável, abre para que o Rei da Glória entre”. E o profeta Davi disse: “Não sabes, cego, que estando eu ainda no mundo, fiz esta profecia: “Elevai, ó príncipes, vossas portas!?’” Isaías por sua vez disse: “Eu, prevendo isto pela virtude do Espírito Santo, escrevi: “Os mortos ressuscitarão e os que estão no sepulcro levantar-se-ão e os que vivem na terra alegrar-se-ão’; e onde estão, ó morte, teus grilhões? Aonde, Inferno, a tua vitória?”
Então, de novo veio uma voz que dizia: “Levantai as portas”. O Inferno, que ouviu repetir esta voz, disse como se não se apercebesse: “Quem é este Rei da Glória?” E os anjos do Senhor responderam: “O Senhor forte e poderoso, o Senhor poderoso na batalha”. E num instante, à convocação de conjuração desta voz, as portas de bronze se tornaram pequeninas e os ferrolhos de ferro ficaram reduzidos a pedaços, e todos os defuntos acorrentados viram-se livres de suas correntes, e nós dentre eles. E entrou o Rei da Glória na figura humana, e todos os antros escuros de Inferno foram iluminados.
Em seguida o Inferno começou a gritar: “Fomos vencidos, ai de nós! Mas quem és tu, que possuis tal poder e força? Quem és tu, que vens aqui sem pecado? Aquele que é pequeno na aparência e pode grandes coisas, o humilde e o excelso, o servo e o senhor, o soldado e o rei, aquele que tem poder sobre os vivos e os mortos? Foste pregado à cruz e colocado no sepulcro, e agora ficaste livre e desfizeste nossa força. Então, por conseguinte, é tu Jesus, de quem nos falava o grande sátrapa Satanás, que pela cruz e pela morte tornar-te-ias dono de todo o mundo?”
Então o Inferno encarregou-se de Satanás e disse-lhe: “Belzebu, herdeiro do fogo e da tempestade, inimigo dos santos, que necessidade tinhas de providenciar para que o Rei da Glória fosse crucificado e que viesse depois aqui e nos despojasse? Vira-te e olha que em mim não ficou nenhum morto, pois que tudo o que ganhaste pela árvore da ciência puseste a perder pela cruz. Todo o teu gozo converteu-se em tristeza, e a pretensão de matar o Rei da Glória provocou tua própria morte. E, uma vez que te recebi com a recomendação de subjugar-te fortemente, aprenderás com a própria experiência quanto mal sou capaz de infligir-te. Ó chefe dos diabos, princípio da morte, raiz do pecado, final de toda a maldade, que encontraste de mal em Jesus para buscar sua perdição? Como tiveste coragem para perpetrar um crime tão grande? Por que te ocorreu fazer um varão como este descer até estas trevas, pois as despojou de todos os que morreram desde o princípio?”
Enquanto o Inferno admoestava assim Satanás, o Rei da Glória estendeu sua mão direita e com ela pegou e levantou o primeiro pai Adão. Depois dirigiu-se aos demais e disse-lhes: “Vinde aqui comigo todos os que foram feridos de morte pelo madeiro que me tocou, pois eis aqui que eu vos ressuscito pela madeira da cruz”. E com isto levou todos para fora. E o primeiro pai Adão apareceu transbordante de gozo e dizia: “Agradeço, Senhor, tua magnanimidade por me haveres tirado do mais profundo Inferno”. E também todos os profetas e santos disseram: “Damos-te graças, ó Cristo Salvador do mundo, porque tiraste nossa vida da corrupção”.
Depois de assim haverem falado, o Salvador abençoou Adão na testa com o sinal da cruz. Depois fez a mesma coisa com os patriarcas, profetas, mártires e progenitores. E a seguir pegou-os a todos e deu um salto do Inferno. E enquanto ele caminhava, os santos pais seguiam-no cantando e dizendo: “Bendito aquele que vem em nome do Senhor. Aleluia! Sejam para ele os louvores de todos os santos”.
Ia, então, a caminho do paraíso levando pela mão o primeiro pai Adão. E ao chegar, entregou-o, assim como os demais justos, ao arcanjo Micael. E quando entraram pela porta do paraíso, saíram dois anciãos, aos quais os santos pais perguntaram: “Quem sois vós, que não viestes a morte nem descestes ao Inferno, mas viveis de corpo e alma no paraíso?” Um deles respondeu e disse: “Eu sou Enoch, aquele que agradou ao Senhor e foi trazido aqui por Ele; este é Elias e Tesbita; ambos seguiremos vivendo até a consumação dos séculos; então seremos enviados por Deus para enfrentar o anticristo e ser mortos por ele, e ressuscitar no terceiro dia, para depois sermos arrebatados pelas nuvens ao encontro do Senhor”.
Enquanto eles assim se expressavam, veio outro homem de aparência humilde, que levava ainda sobre os seus ombros uma cruz. Os santos pais disseram-lhe: “Quem és tu, que tens o aspecto de ladrão, e que é essa cruz que leva sobre teus ombros?” Ele respondeu: “Eu, segundo dizes, era ladrão e assaltante no mundo e por isso os judeus prenderam-me e entregaram-me à morte na cruz juntamente com Nosso Senhor Jesus Cristo. E enquanto ele pendia na cruz, ao ver os prodígios que se sucederam, acreditei e roguei a ele dizendo: “Senhor, quando reinares, não te esqueças de mim’. E ele logo disse-me: “Em verdade em verdade te digo, hoje mesmo estarás comigo no paraíso’. Vim, pois, com minha cruz nas costas até o paraíso e, encontrando o arcanjo Micael, disse-lhe: Nosso Senhor Jesus, aquele que foi crucificado, enviou-me aqui; leva-me, então, até a porta do Éden’. E quando a espada de fogo viu o sinal da cruz, abriu-me a porta e entrei. Depois o arcanjo disse-me: “Espera um momento, já que também deve ir o primeiro pai da raça humana, Adão, em companhia dos justos, para que eles também entrem. E agora, ao vê-los, saí ao vosso encontro’.”
Quando os santos ouviram isto, exclamaram em voz alta da seguinte maneira: “Grande é o nosso Senhor e grande é o seu poder”.
Tudo isto nós vimos e ouvimos, os dois irmãos gêmeos, que fomos também enviados pelo arcanjo Micael e designados para pregar a ressurreição do Senhor antes de ir até o Jordão e sermos batizados. Para ali fomos e fomos batizados juntamente com outros defuntos também ressuscitados; depois viemos a Jerusalém e celebramos a Páscoa da ressurreição. Mas agora, na impossibilidade de permanecermos aqui, vamo-nos. Que a caridade, então, de Deus Pai e a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo e a comunicação dos Espírito Santo estejam convosco”. E, uma vez isto escrito e fechados os livros, deram a metade aos pontífices e a outra metade a José e a Nicodemus. Eles, por sua vez, desapareceram imediatamente para a glória de Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.