Thomas Merton — Poesia e Contemplação
Excertos da tradução do Mosteiro da Virgem (Petrópolis)
V
O eremita do deserto1 Amonas, discípulo de Santo Antão, declarou:
Eis, meus caríssimos, mostrei-lhes o poder do silêncio; como ele cura inteiramente, e é plenamente agradável a Deus. Por isso, escrevi-lhes, para que se mostrassem fortes nesse trabalho que empreenderam; para que saibam como foi pelo silêncio que cresceram os santos; como foi pelo silêncio que o poder de Deus neles residia; por causa do silêncio, os mistérios de Deus eram por eles conhecidos.2
A oração do coração nos introduz no profundo silêncio interior, de maneira que aprendemos a experimentar seu poder. Por esse motivo, a oração do coração deve ser sempre muito simples, limitando-se aos atos mais simples e frequentemente não empregando nem palavras, nem pensamentos. Se, por outro lado, falamos da meditação como “oração mental”, consistindo em atos discursivos que muito nos ocupam, em raciocínios lógicos, complexos, ativa imaginação e a deliberada ativação de afetos, vemos, então, como o demonstra São João da Cruz, que este tipo de meditação tende a entrar em conflito com nossa atenção silenciosa e receptiva e com a atuação interior do Espírito Santo. E isso especialmente se tentamos continuar esse processo uma vez terminada sua utilidade. O esforço mal colocado, na vida espiritual, consiste muitas vezes em insistir teimosamente em manter rotinas obrigatórias que nos parecem necessárias porque concordam com nossas míopes noções. São João da Cruz afirma que esta teimosa insistência não pode ser curada por nossa própria atividade. Tem de ser “purificada” pelo próprio Deus na “noite” da contemplação. O santo nos ensina como esses esforços mal colocados, e as faltas do caráter e da natureza de onde brotam, só podem ser removidos pela ação secreta e purificadora da graça, na “noite escura”. Falando dos que são orientados em seu esforço pelo gosto e a estima que têm pela sua própria e auto-dirigida atividade, João da Cruz mostra que é precisamente esse apego à sua própria maneira de rezar e meditar que impede seu crescimento na vida espiritual.
Quanto mais espiritual for alguma coisa, mais enfadonha acham-na. Pois como procuram tratar das coisas espirituais com completa liberdade e de acordo com a inclinação de sua vontade, causa-lhes tristeza e repugnância entrar no caminho estreito que, diz o Cristo, é o caminho da vida.3
João da Cruz supõe aqui uma total contradição entre o que é autenticamente espiritual (portanto simples e obscuro) e o que parece a essas pessoas ser espiritual porque isso as excita e estimula psicologicamente.
Deus conduz essas pessoas ao caminho da vida privando-as da luz e consolação que procuram, impedindo seus esforços, tornando-as confusas e privando-as das satisfações que procuram alcançar por seus próprios esforços. Assim bloqueadas e frustradas, incapazes de prosseguir com seus costumeiros projetos, encontram-se num estado muito doloroso em que seus desejos, a estima de si mesmas, sua presunção, agressividade, e assim por diante, são sistematicamente humilhados. E, o que é pior, não conseguem compreender como isto aconteceu! Não sabem o que lhes sucede. Aqui é que devem decidir, ou continuar no caminho da oração sob a secreta orientação da graça, na noite da fé pura, ou, então, voltar a uma forma de existência na qual podem desfrutar rotinas habituais e conservar um senso ilusório de sua própria e perfeita autonomia em domínios que lhes são inteiramente familiares sem ter de permanecer sujeitos à obediência da fé nessas circunstâncias desagradáveis e desconcertantes próprias à “noite escura”.
Diz São João da Cruz que Deus leva essas pessoas à escuridão — … aí desmamando-as Deus de todos os sabores e gostos, por meio de fortes securas e trevas interiores, tira-lhes todas estas impertinências e ninharias; ao mesmo tempo, faz com que ganhem virtudes por meios muito diferentes. Por mais que a alma principiante se exercite na mortificação de todas as suas ações e paixões, jamais chegará a consegui-lo totalmente, por maiores esforços que empregue, até que Deus opere passivamente nela por meio da purificação da noite.4
Conviria bem recordar aqui que, para São João da Cruz, essa “noite” de modo algum é uma negação. Se esvazia a mente e o coração das satisfações conaturais do conhecimento e do amor em nível simplesmente humano, é apenas para plenificá-los com uma luz mais elevada o pura que é a “escuridão”. Esse obscurecimento é, portanto, uma iluminação. Deus obscurece a mente apenas a fim de dar maior e mais perfeita luz. A razão por que a luz da fé é escuridão para a alma é, diz São João da Cruz, o fato de ser ela luz excessiva. A abertura direta à luz sobrenatural obscurece a alma e o coração e é precisamente desse modo que, conduzido para dentro da “noite escura da fé”, se passa cia meditação, no sentido de “oração mental” ativa, à contemplação, ou forma mais profunda e mais simples de receptividade, em que, se é que se pode dizer que se está de todo “meditando”, isso sucede apenas pelo fato de se estar recebendo a luz com atenção amorosa e passiva. Assim, declara São João da Cruz :
Portanto, esta excessiva luz, que a alma recebe da fé, converte-se em espessa treva, porque o maior sobrepuja e vence o menor, assim como a luz irradiante do sol obscurece o brilho de quaisquer luzes, fazendo não mais parecerem luzes aos nossos olhos, quando ele brilha e vence nossa potência visual. Em vez de dar-nos vista, o seu esplendor nos cega, devido à desproporção entre o mesmo sol e a potência visual. De modo análogo, a luz da fé, pelo seu grande excesso, supera e vence a luz de nosso entendimento que só alcança por si mesma a ciência natural; embora tenha, para as coisas sobrenaturais, a potência chamada obediência!, quando Nosso Senhor a quer pôr em ato sobrenatural.5
A meta da oração monástica, da salmodia: oratio, meditatio, no sentido da oração do coração, — e mesmo da lectio, — é preparar o caminho de modo que a ação de Deus possa desenvolver essa “capacidade para o sobrenatural”, para a iluminação interior pela fé e pela luz da sabedoria, na contemplação amorosa de Deus. Uma vez que o verdadeiro fim da meditação deve ser considerado a essa luz, podemos compreender como um tipo de meditação que procura apenas desenvolver nosso raciocínio, fortalecer nossa imaginação e tonificar o clima interior do sentimento de devoção tem pouco valor real nesse contexto. É verdade que se pode aproveitar aprendendo esses métodos de meditação, mas é preciso também saber quando se deve deixá-los de lado e passar além, a uma forma de oração mais simples, mais primitiva, mais “obscura” e mais receptiva. Se essa oração “obscura” se torna dolorosa, árida e infrutífera, melhor será procurar auxílio na salmodia ou em algumas palavras simples das Escrituras, em lugar de recorrer à convencional engrenagem da “oração mental” discursiva.
NOTAS