Merton Quietude

Thomas Merton — Ascensão para a Verdade
A INTELIGÊNCIA NA ORAÇÃO DE QUIETUDE
S. João da Cruz e S. Teresa nos deixaram estudos minuciosos dos caminhos da oração contemplativa. Mais do que qualquer outro místico, eles nos descreveram os pormenores práticos de nossa cooperação com o Espírito de Deus no grau de oração que aqui nos interessa. Ambos acham que na Noite dos sentidos e na oração de Quietude, as faculdades da alma são de algum modo passivas. Mas concordam também em que elas ainda são livres de agir, podendo ajudar ou estorvar a ação de Deus. Pensam igualmente que para ajudar a obra da graça, as faculdades devem pôr-se em uma atividade muito simplificada, que na hora da oração passiva, consiste em não fazer outro esforço senão conservar-nos passivos. Fora do tempo da oração, podem fazer mais. Mas é, de qualquer modo, mortificante manter a alma num estado de atenta receptividade durante os primeiros passos da oração passiva quando a graça age quase sem se fazer sentir e a imaginação é solicitada por muitas distrações.

Quero aqui resumir um importante capítulo na vida de S. Teresa. Ele nos diz o que a nossa alma pode e deve fazer na oração de quietude.

A santa começa por recordar-nos a natureza dessa oração. Este “começo de todas as bênçãos” e “penhor de grandes coisas a vir” é o primeiro antegôzo da mística. Pois, embora possa a contemplação infusa começar durante aquela árida parte da Noite cios Sentidos em que não se sente a presença divina, contudo a oração de quietude muito evidentemente absorve a alma num estado de recolhimento passivo e banha todo o ser com uma indescritível paz que desce do senso profundo e atual da presença de Deus. As águas escuras da alma foram subitamente iluminadas pela luz celeste. Envolvida da claridade de Deus, acorda a uma nova vida, descobre-se como um ser diferente e descansa numa alegria desconhecida. No entanto, esse senso de Deus não é claramente definido, porque a alma ainda está ofuscada pela caridade divina. O espírito fica numa tranqüilidade profunda, balouça docemente como um barco ancorado em porto seguro, enquanto o sol se levanta sobre um novo mundo através de uma névoa silenciosa e translúcida. A idéia do barco é minha e não de S. Teresa e pode ter obscurecido a matéria. Mas as expressões que ela usa bastam para aclarar o sentido. São “quietude”, “recolhimento”, “satisfação”, “paz”, “alegria muito grande”, “repouso das faculdades”, “doce delícia”. William Blake conheceu esta oração e falou dela como de uma noite de luar.

Muito bem. Nesta oração, as faculdades são passivas. E, no entanto, podem agir.

São passivas, isto é, nada podem fazer nem para adquirir esta bênção, nem para conservá-la. É um puro dom de Deus. Não é produzido por nenhuma técnica deliberada. Os nossos esforços só podem dispor-nos a recebê-lo como uma dádiva. É por isto que a oração de quietude pode ser distinta dos paralelos naturais da experiência mística, ao alcance do esforço do homem. A alma pode tornar-se recolhida à custa dos próprios esforços, concentrando-se em si mesma numa experiência profundamente repousante. Mesmo o amor humano pode às vezes produzir esse efeito, embora seja mais apto a gerar a inquietude do que a paz. A alma que adquiriu um alto grau ascético de recolhimento é capaz de produzir voluntariamente uma reflexão intelectual sobre o ser metafísico de Deus presente em seu íntimo. Isso pode às vezes ser realçado por uma inspiração natural do gênero a que já nos referimos ao falar da intuição metafísica do ser. Na oração da quietude, a experiência é algo de maior. A alma inteira sente-se iluminada, vitalizada, erguida a um novo plano do ser, e livre, até certo ponto, das limitações materiais. Ela tem um extraordinário senso de lucidez e de liberdade, como um adolescente que acaba de sair da aula ou um pássaro que fugiu da gaiola,. Mas acima de tudo isso, está a divina Realidade em que esta experiência se passa. Não é pelo pensamento ou a reflexão que a alma chegou a Deus, nem é por um conceito que O apreende. Contudo, ela está “n’Ele”, nadando em sua luz, envolvida numa nuvem de ouro. E o fator essencial desta experiência é o descobrimento de Deus, que se revela à alma em sua imanência e transcendência. Tudo que a alma experimenta tem origem neste mistério central, que Deus está em todas as coisas e na alma, mas é, apesar disto, infinitamente acima da alma e de todas as coisas.

E agora, ainda um pouco de S. Teresa. Ela zomba das pessoas que gozaram deste prazer e depois tentam recapturá-lo por seus próprios esforços. Mas ela o faz com muita bondade, porque, afinal de contas, também fora um deles. Os principiantes na oração recebem este admirável sentimento interior. Não ousam mais mover-se. Param transfixados, de olhos fechados, mal ousando respirar, com medo que tudo se desvaneça. Ou então, logo que a centelha do amor é acesa em seu coração, põem-se a empilhar lenha para a fogueira, multiplicando inúteis raciocínios e ocas considerações, que sem demora sufocam o fogo. E S. Teresa resume a sua opinião sobre a inutilidade de nossos esforços para adquirir este grau de oração:

“Estranha forma de crença é esta que, quando Deus quer que um sapo vôe Ele espera que o faça por seus próprios esforços. . . Nossas almas são agravadas pela terra e por mil impedimentos, e o fato de quererem voar, não lhes adianta nada, pois, embora o vôo lhes venha mais naturalmente a elas do que a um sapo, elas são tão completamente mergulhadas no logo que perderam toda a capacidade”.