Peter Brown Origenes Corpo

Peter BrownOrígenes e a questão do corpo-prisão

Se a tensão para transcender os limites atuais do eu era o aspecto mais vivido da concepção de Orígenes sobre a pessoa humana, foi o menos original. O que mais lhe interessava era como conciliar o impulso de transformação — compartilhado por muitos platonistas e gnósticos cristãos da escola de Valentim, com quem ele travava um diálogo constante — com o sentimento da incomensurável sutileza da justiça divina ao colocar o espírito “decaído” dentro dos limites temporários de um corpo material particular. O universo material como um todo, na opinião dele, fora submetido à frustração, não por vontade própria; mas fora submetido na esperança. Para Orígenes, a queda de cada espírito num corpo particular não fora de modo algum um cataclisma; ser colocado num corpo era vivenciar um ato positivo da misericórdia divina. Orígenes se distanciou de muitos de seus contemporâneos ao insistir em que o corpo era necessário para a lenta cura da alma. Somente fazendo pressão contra as limitações impostas por um ambiente material específico é que o espírito aprenderia a recuperar seu anseio mais primitivo de se estender para além de si mesmo, de se abrir de maneira “cada vez mais plena e mais calorosa” para o amor divino. O corpo constituía um desafio que contrabalançava o pecado entorpecedor da presunção. Por isso, “O mundo ante nossos olhos tornou-se um mundo material, em benefício dos espíritos necessitados de uma vida transcorrida na matéria física.” Quando muito, pensava Orígenes, os demônios é que eram dignos de pena: afastados por sua imensa presunção do amor divino, seus corpos tinham ficado perfeitamente sob o controle de sua vontade soberba; sua carne sinistra era tão maleável quanto o frio vento do Norte. “Eles são considerados indignos da instrução e do treinamento mediante os quais, através da carne, a raça humana… auxiliada pelos poderes divinos, é instruída e treinada.”

Daí a profunda ambivalência de Orígenes em relação ao corpo humano. Examinando o corpo de perto, como fonte de tentação e frustração, Orígenes ofereceu um escasso consolo a seus leitores: Tendes carvões em brasa; sobre eles vos sentareis e eles vos serão úteis.

Todavia, aos olhos de Deus, a cada espírito humano em particular fora destinada uma dada constituição física como seu contendor apropriado. O corpo material de cada um era específico dessa pessoa e fora delicadamente dimensionado por Deus, “o único perscrutador de corações”, para desafiar o espírito potencialmente poderoso de cada um a se estender para além de si mesmo. Assim, longe de encarar o corpo como uma prisão da alma, Orígenes chegou a uma inesperada familiaridade com ele. Sempre lhe pareceu que o espírito de cada pessoa devia ser tão vivamente distintivo quanto o eram os traços de seu rosto. A doce precisão da misericórdia divina assegurava que cada corpo se adaptasse às necessidades peculiares de sua alma, até os mais ínfimos detalhes, exatamente como as linhas da grafia de cada um eram-lhe inconfundivelmente próprias. As relações de cada um com o corpo, portanto, tinham sua própria história insondavelmente particular: aos olhos de Deus, a “castidade” de Pedro era tão diferente da castidade de Paulo quanto o era a assinatura de cada Apóstolo. Confrontados com sua própria natureza humana irredutivelmente particular todos os fiéis lutavam por manter em si o imenso ímpeto do anseio de seu espírito por Deus.


Orígenes legou a seus sucessores uma visão da pessoa humana que continuou a inspirar, fascinar e desanimar todas as gerações subseqüentes. Transmitiu, acima de tudo, um profundo sentimento da fluidez do corpo. Certos aspectos básicos dos seres humanos, como a sexualidade, as diferenças sexuais e outros atributos aparentemente indestrutíveis da pessoa, associados com o corpo físico, afiguraram-se a Orígenes meramente provisórios. O corpo humano atual refletia as necessidades de um momento isolado e um tanto restrito do progresso do espírito de volta a uma identidade anterior ilimitada.

O corpo, no sentido de uma moldura limitadora do espírito, permaneceria com todas as criaturas durante todo o seu prolongado período de cura. Mas Orígenes teve o cuidado de assinalar que esse corpo não teria necessariamente uma continuidade com o organismo físico atual. Seria igualmente transformado, junto com o espírito, “ao longo de eras diversificadas e incomensuráveis”, das quais a vida atual era um breve interlúdio. A transformação do corpo nas eras futuras de sua existência implicaria um longo e misterioso processo, tão esplêndido em seu efeito final quanto a matéria pura e “curada” que emergia do cadinho dos alquimistas como ouro. O corpo em si se tornaria menos “espesso”, menos “coagulado”, menos “endurecido”, à medida que a inércia entorpecedora do espírito derretesse sob o calor crescente de seu anseio pela Sabedoria Divina. Como ocorria sob o delicioso efeito do vinho novo, as barreiras que restringiam a pessoa se dissolveriam. O “vaso de barro” do eu atual se despedaçaria, sendo repetidamente remoldado em recipientes de capacidade cada vez maior, em estágios de vida que se estendiam muito além da sepultura.

Foi uma visão do corpo dos homens e mulheres reais obtida de uma perspectiva inquietantemente longínqua. Significou que Orígenes estava disposto a encarar a sexualidade no ser humano como se ela fosse uma simples fase passageira. Era um anexo dispensável da personalidade, que não desempenhava papel algum na definição da essência do espírito humano. A vida humana, vivida num corpo dotado de características sexuais, não passava da última hora de trevas de uma longa noite que se dissiparia com o amanhecer. O corpo estava pousado na fímbria de uma transformação tão imensa a ponto de fazer todas as atuais noções de identidade ligadas às diferenças sexuais, e todos os papéis sociais baseados no casamento, na procriação e no parto, se afigurarem frágeis como a poeira dançando num raio de sol.