Santidrián
Kant, Emmanuel (1724-1804)
Kant nasceu, viveu e morreu na cidade alemã de Konigsberg. Professor de lógica e metafísica na mesma universidade de sua cidade, fez seu o lema do Iluminismo: “Sapere aude”, “atreva-se a pensar”. Submeteu a razão humana ao juízo para que pudesse responder às quatro perguntas fundamentais da filosofia: Que posso conhecer? Que devo fazer? Que posso esperar? Que é o homem? Sua passagem pela filosofia deu a esta um giro copernicano. Mas suas ideias filosóficas transcendem o âmbito acadêmico e afetam todos os campos da vida, particularmente o moral e o religioso. Homem de arraigada fé protestante e de formação e educação pietistas, submeteu a moral e a religião à crítica, principalmente à existência de Deus, chegando a umas conclusões que terão influência decisiva nas ideias e na conduta posteriores.
Na Crítica da razão pura aplica sua teoria do conhecimento ao mundo religioso, e em particular ao conhecimento de Deus, da alma e da eternidade e imortalidade. Segundo Kant, não podemos conhecer o que são as coisas em si mesmas, mas tal como nós as experimentamos através dos sentidos. Em consequência: a) Os argumentos ontológico, cosmológico e teológico não servem para demonstrar a existência de Deus. b) Rejeita também toda pretensão de conhecer como é Deus, porque suporia aplicar ao âmbito do incondicional ou absoluto algo que somente tem vigência no terreno do finito e fenomênico. c) Deste princípio, chega à conclusão de que não é válida a tentativa de provar que Deus existe. A razão não tem uma forma sensível que lhe permita dar o salto até Deus. A Deus somente chegamos pela fé, não pelo conhecimento. Não obstante, o conceito de Deus atua como “princípio regulador” que nos mostra um objetivo teórico capaz de orientar nossa vida.
Na Crítica da razão prática, na Crítica do juízo e na Metafísica dos costumes, Kant aborda a fundamentação da moral e da religião. Sustenta que os conceitos de Deus, alma, liberdade e imortalidade são postulados necessários para dar sentido às exigências incondicionais da moral. A razão prática, a consciência: a) Descobre esses conceitos como postulados que a razão é incapaz de demonstrar, mas que se impõem por si mesmos, b) Descobre deste modo que o homem é livre ao dar-se a si mesmo a lei. c) Descobre finalmente que a liberdade exige a imortalidade e a existência de um ser divino, um Deus justo que reivindique os direitos ou exigências da justiça vulnerados pelas injustiças e desajustes deste mundo.
As conclusões a que essa doutrina de Kant conduz não podem ser mais claras: 1) Não há por que pensar numa religião revelada, como pode ser a revelação histórica do cristianismo. Não há necessidade dela. 2) Também não há necessidade de um redentor especial e particular. Cristo seria tão-somente um mestre ou um filósofo dos homens. 3) A religião não é mais do que o reconhecimento de nossos deveres como mandatos divinos. É um puro reconhecimento da razão prática. Não há, portanto, lugar para a chamada experiência místico-religiosa.
A filosofia de Kant deu uma base racional e filosófica às ideias do Iluminismo sobre o deísmo e a religião natural. (Deísmo). Ao lado de Hume, são os dois pensadores mais sólidos que chegaram a propor as bases do agnosticismo filosófico e religioso modernos. (Santidrián)
Michel Henry
(…) A Crítica da Razão Pura é o protótipo de uma obra transcendental no sentido de que o objeto da análise é a condição apriorística de possibilidade de cada homem concebível, a que Kant chama condição de possibilidade da experiência em geral, definindo, assim, o homem como essa condição de toda experiência, fenomenológica em sua essência. Dessa estrutura fenomenológica do homem constituído pelas formas a priori da intuição pura e pelas categorias do entendimento — que são, umas e outras, modos do fazer-ver –, estabeleceu-se que ela é identicamente a estrutura do mundo, cuja exterioridade pura define a fenomenalidade pura e, assim, “a condição de toda experiência possível”, de todos os “fenômenos”. [332]
Considerando a Bíblia desse ponto de vida transcendental (e deixando de lado tudo o que separa uma obra individual moderna de um conjunto de textos muito antigos redigidos em épocas diferentes por autores diferentes), vê-se o que opõe as duas problemáticas, uma das quais reporta a essência do homem ao mundo e a outra a Deus, no caso à Vida. Se, como Kierkegaard no século XIX, ainda hoje alguns podem achar a Bíblia infinitamente mais profunda que a Crítica da Razão Pura — a despeito da extraordinária potência conceitual de Kant e da elaboração sem igual de sua terminologia — é unicamente em razão dessa diferença fundamental das temáticas, das quais somente a primeira diz respeito ao mais profundo de nós mesmos. Pois, tanto na vida teórica como na vida prática, sempre que nos voltamos para o mundo — esquecendo que nunca é nele que se abre o caminho da vida, mesmo quando esse caminho comporta etapas –, o Essencial se perde e jamais o reencontraremos.1
- É o que mostra o exemplo crucial do Si transcendental que Kant é incapaz de captar em sua “substância” e em sua “simplicidade” próprias, na medida em que uma e outra não são senão a matéria fenomenológica da Vida absoluta em sua fenomenalização originária. Tal é, com efeito, a confissão trágica da problemática desértica da crítica do paralogismo da psicologia racional na Crítica da Razão Pura. Sobre isso, cf. nossa Genealogia da Psicanálise, op. cit., cap. IV: “A subjetividade vazia e a vida perdida: a crítica kantiana da alma’”.[↩]