Gilbert Durand — A Fé do Sapateiro
Excertos da tradução de Sérgio Bath, CAMINHOS DO ANO
Ano Litúrgico Judeu, Pagão e Cristão
Vale lembrar que o calendário judeu é lunissolar (salvo os calendários dos essênios e dos “jubilados”, que é solar). Cada 235 lunações, ou seja, cada 19 anos solares (19, o “número de ouro”, equivale a (3×4) + (3+4) ), as fases da Lua retornam aos mesmos dias. A Páscoa (em hebraico Pesah, “a passagem” do anjo de YHWH no Egito, poupando as casas marcadas com sangue de cordeiro), enxertando-se talvez em uma antiga festividade dos cananeus, a da colheita da cevada, o primeiro cereal a amadurecer (o rito do pão sem fermento o testemunha), está situada no mês de Ahih (as “espigas”, mais tarde Nizan), no 14° dia, o da lua cheia de primavera. Essa festa primordial determina as duas outras grandes festas dos judeus: cinquenta dias depois, em 14 do mês de sivan, é o Pentecostes (Shavuot), festa da colheita do trigo, que comemora a Lei dada a Moisés no Êxodo.” Depois vem a terceira grande festa de peregrinação: o 15° dia do sétimo mês (tishri): festa de Sukkot, os “Tabernáculos”, que comemora a travessia do deserto pelo povo judeu. Em Israel é hoje uma festa das frutas, com a oferta de primícias.
Por fim, a essas três festividades, que celebram do seu modo o Êxodo, sob os três ângulos do ano — primavera, princípio do verão, outono — se soma uma grande festa para a qual Armand Abécassis me chamou a atenção, e por isso lhe estou muito grato. Trata-se da festa da Hanukah, no dia 25 do terceiro mês (kislev), ou seja, o solstício do inverno, que comemora um acontecimento milagroso quando da reconquista de Jerusalém por Judas Maqabi, protótipo do Messias judeu. É o milagre da “multiplicação do óleo”, para acender o candelabro de sete ramos, o Menorah. Uma festa da Luz (o solstício obriga!) em que oito lâmpadas permanecem acesas durante oito dias. Os rabinos salientam que a 25a palavra da Thora é aor, “luz”; e que igualmente no dia 25 do mês de kislev foi concluída a construção do segundo templo, o de Zorobabel. Assim a festa da Hanukah confunde em sua celebração dois milagres da luz: o atribuído pela tradição a Neemias, quando da reconstrução do templo por Zorobabel, em que a lama se transformou numa chama clara; e o dos Macabeus, multiplicando o óleo contido num frasco. Voltaremos logo a encontrar esse rico simbolismo.
Ora, o cristianismo nos seus calendários mais antigos e nos comentários de Eusébio guardará duas das grandes festas judias “lunissolares”: a Páscoa e, cinquenta dias depois, Pentecostes. Houve muita discussão, porque a Pesah judia caía no dia 14 do mês de nizan, qualquer que fosse o dia da semana; mas, a partir do Papa Vitor (século II) e sobretudo depois da confirmação do Concílio de Niceia (que aliás fixou o equinócio da primavera no dia 21 de março do calendário juliano), os cristãos sacralizaram o oitavo dia, o domingo. A Páscoa é celebrada no primeiro domingo que segue o dia 14 de Nizan, ou seja, a primeira lua cheia da primavera. De qualquer modo, conforme afirma muito justamente um exegeta moderno, o essencial é a ligação entre a Festa das Festas (festum festorum) e os “ciclos naturais, desejados por Deus, que servem para exprimi-lo: o primeiro plenilúnio da primavera”.
No curso dos séculos III e IV, o Pentecostes e depois a Ascensão dependem da Festa das Festas. Mas a significação judia dessas duas festas mais importantes, a Páscoa e Pentecostes, permanece viva no âmago das duas festas cristãs. A “passagem”, que pelo sangue do cordeiro marca a salvação dos judeus e a partida do Êxodo, corresponde seguramente o sacrifício salvífico do Agnus Dei. Quanto à descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos, ela é homóloga à descida da Lei no Sinai. Na idade Média soava-se a trombeta durante a sequência verti sancte spiritus, com o propósito, diz Dom Lefèbvre, “de lembrar a trombeta do Sinai”. No seu significado, Páscoa e Pentecostes dos judeus, talvez dos cananeus (festa das espigas nascentes e da sua colheita), são exatamente simétricos à Páscoa e Pentecostes dos cristãos: a Páscoa é a tribulação do sangue e a vitória liberadora sobre a tribulação da morte; o Pentecostes é a recompensa, “retribuição temporal” pela descida do Espírito Santo, no Sinai e no Cenáculo.
Se a festa dos Tabernáculos não foi mantida explicitamente pelo cristianismo (veremos sua ressurgência implícita), de outro lado o cristianismo reforça a festa messiânica da Hanukah, se é que se pode dizer isso. Armand Abécassis aproxima a etimologia de Hanokh (Enoque), que, elevado da terra, tornou-se o anjo Metatron. É exatamente o inverso do nosso Natal cristão, em que Christos angelos, “Verbo e Luz”, desce à terra para habitá-la e inaugura o “mundo do oitavo dia”. O número 8 tem uma tonalidade messiânica: a circuncisão é feita no oitavo dia. Nosso calendário tradicional guardava essa data, cujo símbolo se reforçava caindo em primeiro de janeiro. Como observa Abécassis, “a passagem do 7 ao 8 é a do ser ao dever ser”. Os Tabernáculos (“Celebrai durante sete dias… descansai sete dias sob as tendas…”) eram consagrados ao número 7, do mundo humano, do Chabbat. O oitavo dia — evoca o 8o keshvar, de que Corbin se fez o intérprete — “está além do Sol”, como diz o Rabi Youdan comentando o Eclesiastes. Nossa liturgia responde com um eco: lumen de lumine.
O Messias judeu só virá na noite do sábado, entre o sétimo e o oitavo dias. O óleo destinado a ungir os reis e do Messias é chamado de Chenien, “oito”. Poderíamos evocar também o ogdoade de Philon, relacionado com a transfiguração de Moisés no Egito (nosso calendário tradicional fixa a festa da transfiguração do Cristo no oitavo mês do calendário júlio-gregoriano, o mês de Augustus…). Assim, nossos batistérios foram durante muito tempo “octogonais”… e como o sublinha Santo Ambrósio, in octavo numero resurrectionis est plenitudo. E, para concluir este florilégio do número oito, cujo sentido é completado pelo nascimento do Cristo, assim como o acender das lâmpadas do templo de Zorobadel, citemos mais uma vez Abécassis: “Seria necessário procurar aqui a razão pela qual os cristãos retiraram a dignidade ao Chabbat e fizeram da sua véspera o dia do Ungido, que chegou há já vinte séculos…”.
Concorrendo com essa focalização judia na lunação do equinócio da primavera, são instituídas desde o século III as festas fixas ligadas aos meses solares do calendário do “gentio”, o calendário juliano, como ilustra o famoso calendário filocaliano.
Ora, a divisão do ano em quatro partes, judia e cananeia, repete inteiramente as quatro grandes feriae da Roma “pagã”. A Hanukah-Natal correspondem as feriae sementines, que, no solstício de inverno, integram a comemoração do plantio na liturgia romana e prolongam as grandes festas das Saturnais, de 17 a 23 de dezembro. Festas orgiásticas, seguramente, como todas as festas de renovação, abolindo o tempo perempto e morto, de que os festejos do nosso velho Natal e de São Nicolau, talvez igualmente da “Befana” e de todas as nossas “fêtes des fous” são uma sobrevivência tenaz, mas também as festas sob a invocação de Saturno. Saturno que em Roma se confundia muitas vezes com Janus, a divindade dos começos, das aberturas, é, como na Babilônia, a divindade da Justiça, da Civilização, o monarca da idade do ouro. A antiga astronomia coloca assim o astro saturniano como o oitavo “planeta”, se contarmos o círculo sublunar, portanto a Terra. O planeta cujo círculo é o último, antes da esfera dos astros fixos.
Na primavera são as feriae robigalium ou Robigalia, comemoração das espigas, invocando o gênio agrário Robigus contra a ferrugem do trigo (robigo). Essa a origem das nossas procissões dos rogos, na mesma data (25 de abril), instituídas em Roma por São Gregório o Grande, que guardam o espírito e até mesmo o exato itinerário, da porta Flamínia á via Cláudia. Como a festa pagã, a cristã é uma festa de prece (rogare), onde, com Elias, pede-se “a chuva e os frutos da terra”, e onde o Evangelho de Lucas (XI, 5-13) amplia o petite et accipietis. Muito próximas das Robigalia se situam duas outras festas de solicitação da fecundidade agrícola: as Parilia, no dia 21 de abril, festa das favas em haste, e, em 23 de abril, as Vinalia priora, festas da floração da vinha.
A terceira comemoração juliana é a da colheita, feriae messis, que repete o Pentecostes judeu e cristão, no solstício de junho. Veremos que o cristianismo ampliou o símbolo da colheita, fazendo desse período a colheita apostólica.
Finalmente, a quarta festa romana, da vindima (feriae vindemiales), em setembro, no equinócio de outono, no fim do mês zodiacal da Virgem, repete a festa judia dos Tabernáculos. Mas desde o mês de agosto duas outras festas importantes anunciam a quarta celebração do outono: no dia 19 a festa da vindima propriamente dita, vinalia rustica; no dia 23 as folcanalia, em homenagem a Volcanos, duplo de Quirinus, o Grande Deus da abundância e das colheitas. Nessa ocasião se sacrifica a Ops, a Abundância e as Ninfas.
Como Santo Isidoro de Sevilha já o testemunha no século VII, a Igreja católica conservou essa divisão anual quadripartite de caráter “agrário” (para não dizer “pagão”; mas “pagão” não vem de paganus?) com os jejuns dos “Quatro Tempos”, nas quartas-feiras, sextas e sábados, do primeiro, quarto, sétimo e décimo meses, que introduzem por assim dizer, pelo menos no que toca o primeiro, o quarto e o décimo meses, as grandes celebrações da Páscoa, de Pentecostes e do Natal. Essas feriae guardam ainda seu lugar no ciclo litúrgico tradicional, marcadas por missas especiais. E, acrescenta um liturgista moderno, “como até o século VI esses jejuns só eram praticados em Roma, acredita-se que constituem uma transformação de festas pagãs”.
Nas igrejas orientais a divisão quadripartite do ano é ainda mais explícita. Essas igrejas distinguem quatro “quaresmas” — a da Páscoa, a dos Apóstolos (preparatória das festas de São Pedro e São Paulo), a do Natal (de 15 de novembro a 24 de dezembro) e, sobretudo, a grande recorrência sobre a qual voltaremos a falar, a Quaresma da Virgem, de primeiro a 14 de agosto, antes das grandes festas marianas…
Desse modo o ano litúrgico cristão, e notadamente o do catolicismo tradicional, vem “realizar” harmoniosamente, de acordo com suas profissões de fé, a grande divisão do ano solar em quatro partes, tal como ela se manifesta nas civilizações da bacia do Mediterrâneo. Assim, uma devoção imemorial, em que a criação e a natureza se ajustavam aos mistérios da fé, voltava a encontrar a sólida ancoragem do tempo no quaternário do espaço do mundo criado. Velho “quatérnio” imemorial que todo um simbolismo cristão iria ampliar — a princípio com o “sinal da cruz”; onde à Trindade teológica temos o acréscimo de Maria, a “corporificação” de Deus; onde o Mal não é, como na tradição trinitária de Platão, privatio boni, mas sofrimento de Deus, crucifixio… A psicologia mais moderna, dita psicologia profunda, iria encontrar também esse poder da quaternidade ao acrescentar às três luzes “conscientes” a face oculta do inconsciente, umbra solis…