Agostinho de Hipona — SERMÕES DA PÁSCOA — QUARESMA
O jejum é a primeira observância da Quaresma. O termo compreende ao mesmo tempo a obrigação do jejum propriamente dito, da abstinência e da continência.
Durante a Quaresma, fiéis e competentes jejuavam todos os dias, excepto domingos e Quinta-Feira Santa1. O jejum consistia, ao que parece, em tomar alimento numa única refeição, pelas três horas. A abstinência diz respeito à carne e ao vinho. Também se omitiam banhos, porque banhos e jejum eram incompatíveis2.
Os conselhos que se dão demonstram ao mesmo tempo bom senso e largueza de vistas. Pode-se fazer caso da saúde. Jejum e abstinência não devem fazer crer que haja alimentos impuros. O texto da Epístola a Tito «Omnia munda mundis» (Para os puros tudo é puro; S 208, 1; 209, 3), acautela-nos contra este erro do maniqueísmo, porque seria sacrilégio (sacrilégio errore) condenar uma criatura de Deus.
Como era de prever, os fiéis mais engenhosos em esquivarem-se aos rigores da penitência são os que se mostram mais parvamente escrupulosos: em casa põem fora até as panelas onde coziam a carne; mas a abstinência da Quaresma ocasiona um belo ensejo para a gula, e por isso gostariam aqueles paladares que não tivesse fim a Quaresma. Nada de vinho, mas sucos de deliciosa fruta; nada de carne, mas esquisitas iguarias. Aumento de despesas, quando o que se devia procurar era viver pobremente (S 210, 11). Alguns, como Agostinho observa com tristeza (tacere non possum, não o posso calar), cevam-se tão glutonamente à hora da comida que nem o jejum lhes dá tempo de fazer a digestão (S 210, 10). São exemplos que se não devem seguir. Mas, seja o que for, há um jejum a que nos podemos entregar plenamente, o jejum do coração, o jejum das más inclinações, o jejum da ira, do ódio, dos vícios que tanto nos prejudicam (S 207, 3).
E excepto sábado, para aqueles que assim o entendiam. A carta 36 ocupa-se toda ela da pretensão de um anônimo, originário de Roma, de julgar as igrejas onde não se jejuava o sábado; o costume romano era jejuar quartas, sextas e sábados. A discussão refere-se aos jejuns de todo o ano e não só os da Quaresma; mas para o fim, antes de mencionar que na África o costume variava de igreja para igreja e mesmo de fiel para fiel, Agostinho observa: Quod quidem uno die quo Pascha celebratur … sic ab omnibus jejunatur ut etiam illi sabbatis prandent (o caso é que, realmente, no dia que se celebra a Páscoa … de tal modo jejuam todos, que celebram com toda a devoção o jejum de sábado, mesmo aqueles que por todo o ano almoçam nos sábados); e mais adiante: excepto pascali uno sabbato (excepto só o sábado de Páscoa). Se os fiéis aludidos tivessem jejuado nos sábados da Quaresma, a palavra unus não se teria aqui empregado duas vezes. O sermão de Quaresma 210, 9, exorta: ut exceptis diebus per quos certis de causais mos ecclesiae próhibet jejunare domino deo nostro vel quotidiano crebro jejunio placeamus — exceptuados os dias em que a Igreja por justas causas proíbe jejuar, procuremos agradar ao Senhor nosso Deus ou pelo jejum diário ou por um jejum mais frequente (que o habitual). O jejum diário deve-se entender assim: exceptuado o domingo; para os que não jejuam nem sábado nem domingo, deve-se falar de jejum mais frequente «crebrum». A carta 36, citada atrás, terminava com o conselho de seguir o exemplo do bispo do lugar, mas o bispo de Hipona não diz o que ele costumava fazer. ↩
Refectionem quae hora nona fit (Refeição que se faz à hora nona; Epist. 54, 9). Dá uma hora mais serôdia o De moribus ecclesiae Catholicae I, 70: Quotidie semel sub noctem, rejiciendo corpus, quod est usque-quaque usitatissímum (Uma vez cada dia, pelas proximidades da noite, alimenta-se o corpo, como é uso por toda a parte muito generalizado). S. Basilio (De jejunio, Eomilia 1, 10, PG 30, 181) e S. J. Crisóstomo (Ad populum Antiochenum Homilia IV, 6, PG 49, 68) dão a mesma indicação que este sub noctem e justificam usquequaque. Efetivamente, tomava-se, em tempo normal, a primeira refeição à hora quinta, quer dizer, pelas onze da manhã (cf. S 345, 3): cum venerit hora quinta antequam ad mensam accedas, esuris et deftcts (quando chegam as onze horas, tens fome e desfalecimento). Em período de jejum uma refectio (refeição) sem vinho e sem carne, tomada à hora da cena (ceia) (três horas) faz as vezes ao mesmo tempo de prandium (almoço) e de cena (ceia). No texto da carta 36, onde se opõem constantemente jejunium e prandium, vê-se bem que o jejum consiste em abster-se do prandium, isto é (como o francês muito bem traduziu) de «déjeuner» (nalgumas partes de Portugal diz-se dejejum ou dejum ou dejua). Os que jejuam e os que almoçam (dejejuam) encontram-se à cena, cuja hora, como se viu, não deitava para muito tarde. A abstenção do banho, era devida provavelmente à necessidade de economizar as forças, já enfraquecidas pelo jejum (cf. Suetônio, Augustus 82): Verum tantam infirmitatem magna cura tuebatur, in primis lavandi raritate (Porém tamanha fraqueza merecia-lhe grandes cuidados, e em primeiro lugar o de rarear os banhos). ↩