Filosofemas e Revelação
Mas, sob os filosofemas do pensamento grego, que parecem dominar os “sistemas” de Orígenes, de Agostinho e de Erígena, vive e pulsa a alma nova da experiência cristã, que é prodígio e revelação, não obrado raciocínio humano; é super racionalidade que desfaz todo o compromisso com a palavra e o conceito porque alcança uma Verdade que somente o homem interior reconhece; é a heroica ruptura com tudo o que os homens chamam o “mundo”, porque é pressentimento, mais ainda, posse, de um “além”. O historiador busca nas civilizações e nas religiões pré-cristãs as antecipações da mensagem evangélica e fatalmente impulsionado até as fontes mais remotas, cria a ilusão de poder explicar como fenômeno sincretista e intelectualista o que é, em vez disto, a originária e irredutível revelação do Espírito. Com efeito, não só o Novo Testamento é expressão de uma verdade que não pode de modo algum retrocederá filosofia helênica ou a tradição hebraica, senão que também os primeiros dogmas fundamentais da Igreja católica representam a originalidade plena e absoluta da consciência cristã e estão afastados de qualquer influência e compromisso filosófico com a sabedoria dos gregos. Assim acontece com o dogma da Trindade e com o da Encarnação. Para que possam ser formulados se servirão indubitavelmente de termos do ambiente filosófico (hipóstase, substância, essência, logos, etc), mas as intuições que eles devem sustentar não tem nenhum precedente naquele mundo. O dogma da Trindade determina nitidamente a personalidade de Deus em sua absoluta transcendência como círculo espiritual auto-suficiente; o ser, a inteligência e o amor não constituem três momentos de um processo descendente ou de uma emanação dispersiva, senão que são a íntima articulação viva da Unidade absoluta. Nenhuma hierarquia de hipóstases que pretenda preencher o abismo que separa Deus do mundo, o Criador do criado; nenhuma transação com as doutrinas helênicas do logos, do Nous, do demiurgo, da Alma do Cosmo. O dogma da Trindade quer ser a mais decidida afirmação da Transcendência divina, justamente porque concebe a Deus como personalidade absolutamente perfeita em si mesma e isto delineará à especulação filosófica o problema da origem do mundo em toda a sua gravidade.
O dogma da encarnação fixava, por sua vez, em uma fórmula inequívoca, uma concepção teológica que, se parecia um vago pressentimento na crença hindu dos avatares, devia parecer loucura à reflexão dos gregos. Se o dogma trinitário contribuía para manter separado Deus da humanidade, o da Encarnação reunia em Cristo, na unidade de sua pessoa, a natureza divina e a humana. Em Cristo o círculo divino, que parecia inexoravelmente fechado por cima do mundo, se abria para receber em seu seio o homem como se nesta prodigiosa queda completasse o próprio ciclo. O Eterno se introduzia na história e a redimia do seu vago errar. Em Cristo a humanidade se elevava até o Divino e permanecia no Eterno. A ferida que o mundo antigo havia sofrido e percebido, ficava para sempre sanada; e o homem já não devia ansiar em vão, com o pensamento e a vontade, um Absoluto inexoravelmente transcendente, senão que podia encontrar na profundidade de sua alma redimida a luz e a salvação. O espiritualismo, neoplatônico, apesar da proclamada onipresença do Uno, devia conservar intacta a concepção dualista do divino e do humano. O cosmo, ainda que considerado como signo e símbolo da realidade invisível, continuava representando sempre o sedimento extremo da geração divina, condenado a desenvolver-se no tempo, em uma história carente de graça e de significado. Ainda que Agostinho e o Pseudo Dionísio testemunhem em suas construções filosóficas o poderio do influxo neoplatônico demonstram quão essenciais mudanças especulativas podiam trazer a própria estrutura do pensamento helênico os dogmas da Trindade e da Encarnação. Não se podia conciliar a aceitação destes dogmas com as doutrinas fundamentais da filosofia grega; era necessário optar por Platão ou por Cristo, pela sabedoria ou pela fé. Assim acontece que no pensamento de Agostinho domine o dogma da Trindade e que este inspire diretamente a doutrina da alma, acentuando mormente as relações íntimas entre Deus e o espírito humano e exaltando o valor irredutível da personalidade e que no Areopagita o lugar central dado a Cristo na hierarquia dos seres chegue a reconhecer a esta uma plenitude e uma unidade que não encontramos no sistema plotiniano. As tentações da especulação grega deviam ser fontes e sugestivas; contudo o neoplatonismo cristão inspirava-se na mensagem de Cristo; mensagem que, mesmo para uma mente ansiosa de especulações intelectuais, era rica em motivos inesgotáveis, ainda intactos.