Exposição Valentiniana

BIBLIOTECA DE NAG HAMMADI
Excertos de do livro de R. Kuntzmann e J.-D. Dubois, trad. de Álvaro Cunha
A exposição valentiniana e os textos sobre os sacramentos (XI,2)
Tradução de J. E. Ménard, in BCNH, n. 14, 1985.

Este capítulo expõe a visão do valentinismo ocidental a propósito da origem da criação e do desenvolvimento da redenção. É seguido por preces sacramentais bastante mal conservadas. Parece que o conjunto constitui um pequeno catecismo (chamado “o mistério”, p. 22,15) para postulantes gnósticos convidados a participar da vida sacramental de uma comunidade de inspiração cristã.

Depois do mito de Sofia decaída, que é preciso situar no conjunto do sistema:

a) Unicidade absoluta do Pai, que domina o Todo no Silêncio:

E o Silêncio é a tranquilidade, já que, em suma, (ele era) mônada e não havia (ninguém) antes dele. É na díade e na sizígia que ele se encontra e seu paredro é o Silêncio. Ele possuía o Todo que estava nele, a intenção, a permanência, o amor e a perseverança, que são, com efeito, incriados (p. 22,21-30).

b) Desse Pai emana “o Pai que vem, o Filho”, que desce ao mundo inferior, como sumo sacerdote, para revelar o limite que separa o mundo celeste do mundo terreno, a saber, a cruz de Cristo:

O Deus que vem, o Filho, o Nous do Todo, é a Raiz do Todo que vem também com seu Pensamento, pois este (o Pai) e (o Filho) possuía no Nous. Com efeito, ele recebeu um pensamento estranho para o Todo, já que não havia ninguém antes dele naquele Lugar (p. 22,30-38).

(…)

Ele habitava em segundo lugar com (a Vida), pois ele é aquele que projeta o Todo e a hipóstase do Pai, a saber, o Pensamento autêntico e sua descida ao mundo inferior (p. 24,21-28).

Ele é a confirmação e a hipóstase do Todo, o (véu) do Silêncio, o sumo sacerdote (autêntico), aquele que tem o poder de entrar no Santo dos Santos, revelando por um lado a glória (dos) Eões e trazendo por outro lado da abundância ao odor (p. 25,31-39).

c) Sofia, por seu turno, separa-se de Deus e tenta criar sozinha, usurpando assim uma prerrogativa divina. Então, ela cai em solidão amarga e dolorosa. Arrependida, ela recebe Cristo, que desce para ser seu parceiro e libertador. Sua alegre união simboliza agora o Todo em sua unidade reconciliada:

E ela se arrependeu e implorou ao Pai da Verdade (dizendo): “Como eu deixei meu paredro, por causa (disso) também (estou) excluída da confirmação e mereço o que sofri. Eu ficava no Pleroma, gerando os Eões e levando frutos com meu paredro”. E ela soube quem era e o que se havia tornado. Foi assim que eles sofreram, os dois. Diz-se que ela riu, já que permaneceu só e que imitou o Imperceptível; por outro lado, diz-se que ela chora porque se separou de seu paredro (p. 34,23-38).

As páginas 37-38 apresentam um relato das origens particularmente interessante. Apesar das muitas lacunas do texto, eis um trecho que se assemelha a uma síntese de Gn 1-6:

Além disso, esse demiurgo começa a criar um Homem à sua imagem e à semelhança daqueles que existem desde o princípio. Foi tal desmedida que ela colocou à disposição das sementes, a saber (… = faltam nove linhas). (Já que, de fato) o diabo é um dos seres divinos, ele se afasta e se apodera de toda a força das portas (e) arranca a sua (própria) raiz (desse) lugar nos corpos e nos cadáveres de carne, pois eles envolveram o (Homem) de Deus e Adão (gerou). Foi por isso que (ele teve) filhos (que se irritaram uns contra) os outros. E Caim (matou) Abel, seu irmão, porque (o demiurgo) insuflou em (eles) o seu espírito. Produziu-se então o combate da apostasia dos anjos e da humanidade, daqueles da direita contra aqueles da esquerda, daqueles do céu contra os da terra, dos pneumáticos contra os carnais e do diabo contra Deus (p. 37,32-38,33).

As últimas páginas do tratado são compostas de textos fragmentários sobre os sacramentos, segundo a visão valentiniana. A descrição do batismo remete a João Batista (p. 41,31-33), que é ao mesmo tempo psíquico e espiritual, e a Cristo, que tem por missão ungir os fiéis. Eis a passagem relativa ao Batismo A:

É (conveniente para ti agora) enviar (teu filho) Jesus Cristo para que ele nos unja, a fim de que possamos esmagar a cabeça das (serpentes), a cabeça dos escorpiões e (toda) a força do diabo. Ele se assemelha (ao) pastor da se(mente) e por meio dele nós te (conhecemos). E nós te (glorificamos): (Glória) a ti, o Pai no (Filho, o Pai) no Filho, o Pai (na Igreja) santa e (nos) anjos santos. (Desde agora) ele habita (para sempre na) comunidade dos Eões, (até as) eternidades, até os Eões sem marca dos Eões. Amem (p. 40,11-29).

(…)

E mais: o primeiro batismo é o da rejeição (dos pecados. Nós somos) levados (para longe) deles por (meio dele, naquilo) que é de direito, no Imperecível, isto é, o Jordão (p. 41,21-27).

Os valentinianos distinguiam entre dois batismos: o primeiro, de água, que lava os pecados; o segundo, uma unção, que faz do iniciado verdadeiro cristão, participando da união do Pai com o Filho.

O que resta das p. 43,21 a 44,38 é consagrado à eucaristia do pão e da taça. O fim da p. 43 permite-nos compreender que o rito eucarístico possibilita ao gnóstico cumprir a vontade do Pai, pela invocação do nome de Jesus Cristo:

Eles cumprem tua vontade pelo Nome de Jesus Cristo e cumprirão tua vontade (agora) e sempre, sendo perfeitos em toda graça e (em toda) pureza. Glória a ti em teu Filho (e tua) geração, Jesus Cristo, agora e sempre. Amem (p. 43,31-38).