Filoteu o Sinaíta — Quarenta Capítulos sobre a Sobriedade e Vigilância
1. Desenrola-se em nós um combate (agon) mais árduo que a guerra visível. O operário da santidade deve prosseguir, intrépido, para o alvo ( Fl 3,14 ), em espírito (nous), para guardar perfeitamente no coração (kardia) a lembrança de Deus (mneme Theou), como se faz com uma pérola fina ou qualquer outra pedra preciosa. Devemos deixar tudo, até nosso corpo (sarx), e desprezar a vida presente, a fim de não possuir, no coração (kardia), nada além de Deus…
2. Aqueles que conduzem o combate (agon) interior do espírito (nous) devem escolher para si, nas Santas Escrituras, ocupações espirituais (praktike), que aplicarão, com todo zelo, ao espírito (nous), como compressas de saúde. Foi dito que, desde a manhã, é preciso manter-se com uma inflexível resolução, em sentinela diante da porta do coração (kardia), com a lembrança atenta de Deus (mneme Theou) e, na alma (psyche), a oração (euche) constante de Jesus Cristo. Através da vigilância (nepsis) do espírito (nous), é preciso matar todos os pecadores da terra; pela intensidade da lembrança de Deus (mneme Theou), decapitar para o Senhor os poderosos, isto é, cortar as primeiras manifestações dos pensamentos (logismos) inimigos, assim que surjam (peirasmos)…
3. Bem poucos homens conhecem o repouso (hesychia) do espírito (nous). É o privilégio dos que mobilizam tudo, para aproximar de si a graça divina e seu consolo espiritual. Se quisermos nos exercitar na obra (praxis) do espírito (nous) — a filosofia em Cristo — pela guarda do espírito (nous) e pela sobriedade (nepsis), comecemos por privar-nos do excesso de alimento; por suprimir, o quanto pudermos, no beber e no comer. A sobriedade (nepsis) merece o nome de caminho, pois conduz ao reino: o reino interior e o do mundo futuro; também o nome de ofício (praktike) do espírito (nous), pois trabalha e aperfeiçoa os traços de nosso espírito (nous) e o faz passar da condição apaixonada à impassibilidade ( apatheia ). A sobriedade (nepsis) é a pequena janela pela qual Deus entra para mostrar-se ao espírito (nous).
4. Onde estão reunidos humildade, lembrança de Deus (mneme Theou), feita de sobriedade (nepsis) e atenção (epimeleia), oração (euche) inflexível contra os inimigos, é o lugar de Deus, o céu do coração (kardia); as tropas do demônio (diabolos) receiam demorar-se ali, pois é a morada de Deus.
5. Nada perturba mais que a falação, e nada é mais maléfico e capaz de apagar a condição da alma que uma língua intempestiva. Com efeito, o que construímos cada dia, ela o destrói. E o que juntamos com grande pena, a alma o dispersa por uma língua sem consideração. O que é pior que esta língua? Ela é um mal irresistível. É preciso portanto lhe designar limites, lhe opôr a força e a sufocar, por assim dizer, a fim de obrigá-la a não servir senão aí onde é necessária. Que poderia dizer todo o mal que a língua faz à alma?
6. A primeira porta que se abre para a Jerusalém interior — a atenção (epimeleia) do espírito (nous) — é o silêncio prudente dos lábios, enquanto o espírito (nous) ainda não atingiu o silêncio. A segunda é uma abstinência, calculada com exatidão, no beber e no comer. A terceira, a lembrança e a meditação incessantes da morte, que purificam, ao mesmo tempo, a alma (psyche) e o corpo (sarx)… Esta filha de Adão, a lembrança da morte, como desejei guardá-la sempre como companheira, repousar a seu lado, conversar com ela, interrogá-la sobre a sorte que me espera quando eu tiver deixado este corpo (sarx)! Mas o maldito esquecimento, esse filho tenebroso do demônio (diabolos), muitas vezes me tem impedido de fazê-lo.
7. Há uma guerra secreta, na qual os espíritos maus guerreiam contra a alma (psyche), por ação dos pensamentos (logismos). Come a alma (psyche) é incorpórea, esses poderes do mal atacam-na imaterialmente, conforme sua natureza. Vê-se afrontarem-se armas e frentes de batalha, ciladas e combates (agon) terríveis; há lutas corpo a corpo, e as vitórias e derrotas são repartidas. Falta um único ponto de semelhança à guerra espiritual: a declaração das hostilidades… Ela explode repentinamente, sem aviso prévio; por incursão nas profundezas do coração (kardia), surpreende a alma (psyche) numa emboscada mortal. Por que esses assaltos? Para impedir-nos de cumprir a vontade de Deus, conforme a oração (euche): “seja feita a vossa vontade!” ( Mt 6,10 ), isto é, os mandamentos. Quem guarda atentamente o espírito (nous) contra o erro, por meio da sobriedade (nepsis), observa com perspicácia os assaltes e as contendas em torno das imaginações (phantasia) (phantasia). Esse é o fruto de uma longa experiência.
8. Quando tivermos adquirido certo hábito da temperança (enkrateia) e da renúncia aos pecados (hamartia) visíveis, produzidos pelos cinco sentidos, estaremos então aptos a guardar o coração (kardia) com Jesus; aptos a receber sua iluminação, saborear no espírito (nous), com fervorosa ternura, as delícias de sua bondade. A lei que nos ordena purificar (katharsis) o coração (kardia), não tem outra finalidade além de afastar as imagens dos maus pensamentos (logismos) da atmosfera de nosso coração (kardia); dissipá-las através da atenção (epimeleia) constante, de modo a podermos ver com nitidez, como em dia sereno, o Sol de verdade, Jesus, e a se iluminarem em nosso espírito (nous) os aspectos ( as razões ) de sua majestade.
9. Lhe é preciso cada dia se pôr no estado onde devem estar para parecer diante de Deus. O profeta Oseias disse com efeito: «Guarda o amor e a justiça, e aproxima-te continuamente de teu Deus». Malaquias disse a princípio, da parte de Deus: «Um filho glorifica seu pai, e um servidor seu mestre. Mas se sou pai, onde está minha glória, e se sou mestre, onde está o respeito que me é devido?, disse o Senhor todo poderoso» O Apóstolo disse também: «Purifiquemo-nos de toda mácula da carne e do espírito». E a Sabedoria igualmente: «Guarda teu coração em toda vigilância, pois é daí que procede a vida». Quanto ao Senhor Jesus Cristo, ele disse: «Purifica o interior da copa, a fim de que o exterior se torne puro».
10. As conversas intempestivas nos reportam por vezes a aversão daqueles que nos escutam, e outras vezes as injúrias e as gozações daqueles que notam a inépcia de nossos propósitos. Outras conversações nos reportam a mácula da consciência. Outras, enfim, chamam sobre nós a condenação de Deus e a tristeza do Espírito Santo; o que é terrível, mais ainda que todo o resto.
- § 11-20
- § 21-30
- § 31-40